Foi-me pedido para preparar um texto sobre a Palavra de Deus no nosso ser e agir missionário,  na linha da experiência pessoal. Não creio que a minha experiência se diferencie particularmente da de tantos outros missionários. Pelo contrário, a de muitos outros é sem dúvida mais rica e incisiva. Parto de duas circunstâncias pessoais...

CONDUZIDOS PELA PALAVRA EM MISSÃO

A Palavra de Deus na minha vida

P. Manuel João Pereira

P. Manuel João Pereira Correia em Nikki (Benim), em 2005.

Foi-me pedido para preparar um texto sobre a Palavra de Deus no nosso ser e agir missionário,  na linha da experiência pessoal. Não creio que a minha experiência se diferencie particularmente da de tantos outros missionários. Pelo contrário, a de muitos outros é sem dúvida mais rica e incisiva.

Parto de duas circunstâncias pessoais. A primeira é a da doença (Esclerose Lateral Amiotrófica, ELA) que me coloca num «estrado» privilegiado e me permite ter uma percepção diferente da vida. Do «cimo» da doença os horizontes alargam-se diante de nós e o futuro torna-se mais próximo (exercendo um certo calafrio e… fascínio!). Mas o olhar volta-se também para o caminho percorrido, atrás das nossas costas, para contemplar o curso da vida que desce serpenteando em direcção ao vale. Isso oferece-nos uma visão nova e a possibilidade de entrar em contacto com os sentimentos mais profundos que trazemos connosco.

O segundo ponto de referência é o desejo que sempre me acompanhou, de ser «portador da Palavra». Desejo que muitas vezes permaneceu, infelizmente, apenas tal mas que foi luz, guia, motivação que deu sentido à minha vida de missionário. É a este desejo que vou beber, porque vejo nele a expressão daquilo que há de mais genuíno em nós, para lá dos nossos sucessos e insucessos.

Será este um modo de louvar o Senhor pelo protagonismo da Palavra na minha, na nossa vida. Sentir-nos amados, perdoados, nutridos, apoiados por esta Palavra que «levamos». Melhor, tomar consciência de ser «levados» pela Palavra, à qual fomos «confiados» (Actos 20, 32). De «servidores da Palavra», então, nos descobriremos os seus primeiros «beneficiários». A Palavra-Senhora se faz também nossa Serva, ajoelhando-se diante de nós para lavar os pés dos seus apóstolos!

Subvidirei esta minha partilha em sete pontos.

1.         UMA PALAVRA APAIXONANTE

O meu primeiro contacto entusiasta e apaixonado com a Palavra aconteceu durante o teologado em Roma nos anos setenta. Conservo ainda hoje uma grata e alegre recordação daqueles cinco anos. Eram anos empolgantes, depois do Concílio e Capítulo especial comboniano de 1969. O entusiasmo pela descoberta da Palavra de Deus galvanizava-nos um pouco a todos. O P. Fernando Colombo, então secretário-geral da formação, estimulava-nos nesta aventura, convidando alguns de nós a colaborar na preparação de reflexões bíblicas a oferecer ao Instituto.

O entusiasmo pelo mundo bíblico levava-nos a adentrar-nos em ambientes novos e excitantes, como o da tradição hebraica e rabínica. Bem cedo o «enamoramento» precedente pela filosofia (que Mons. Vittorino Girardi me tinha transmitido) cedeu ao charme da pesquisa e especialização bíblica. Em particular com o colega Enzo Bellucco, estimulávamo-nos mutuamente nesta paixão. Sempre encorajados pelo P. Colombo, animávamos juntos o retiro mensal de uma comunidade religiosa. Hoje apetece-me rir, ao pensar na nossa «audácia» de novatos, feita de inexperiência mas também de entusiasmo juvenil. Pobres irmãs idosas (eram a maioria!) cuja paciência submetemos a dura prova! Mas as mais jovens, que estavam precisamente diante de nós, pareciam ávidas de quanto partilhávamos com elas e enchiam cadernos de apontamentos, afervorando ulteriormente o nosso ardor!

Estávamos «apaixonados» pela Palavra, conquistados pela sua frescura. Revejo-me hoje naquela experiência de Jeremias: «Quando recebia as tuas palavras, eu devorava-as. A tua palavra era festa e alegria para o meu coração, porque eu levava o teu Nome, ó Senhor, Deus do universo» (Jeremias, 15, 16).

Esta mesma experiência revivi-a outras vezes nos olhos e nos rostos de tantos jovens, religiosos e religiosas, pregando retiros ou exercícios espirituais. Ver nas suas mãos aquelas bíblias gastas, sublinhadas, rebentadas, obstruídas de papéis e anotações, que quase se recusavam a fechar-se porque habituadas a estar abertas… era entusiasmante! Imaginava de quantas confidências escondidas, de quantos beijos de paixão, de quantos sofrimentos e lágrimas amargas, de quantos momentos de dúvida e de heroísmo, de alegria e de tristeza, de generosidade e de medo… eram testemunhas silenciosas, aquelas bíblias! Quanto poder a Palavra tinha demonstrado sobre aqueles corações, até os levar a renunciar a quanto de mais caro existia no mundo e a tantos projectos e sonhos acarinhados talvez durante anos. Havia qualquer coisa de tremendo e misteriosamente fascinante naquela Palavra, aparentemente tão frágil e humilde, que tinha sido capaz de cativar aqueles corações, entusiasmá-los e arrastá-los numa aventura de contornos incertos e de êxito imprevisível! Resistir àquele fascínio parecia, por vezes, impossível. Quantas vezes terá saído daqueles lábios a confissão de Jeremias: «Seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir» (Jeremias 20, 7).

Pena que aquela bíblia usada, testemunha de uma história de paixão, tenha sido depois esquecida – por alguns de nós – sabe-se lá onde. Aquela «testemunha das núpcias» dos anos de fogo, de alegrias intensas, de sonhos juvenis foi porventura substituída por uma bíblia «nova», bem emoldurada, mais bonita de se ver ou de exibir sobre a escrivaninha ou como ícone no pequeno «altarzinho» que lhe destinámos. Talvez a usemos como objecto de consulta, folheando-a com cuidado para não estragar as páginas. Foi substituída pelo pequeno missal das leituras diárias, mais prático e rápido. Com certo embaraço, damo-nos conta que agora temos uma certa dificuldade em mexer-nos dentro dela!

2.         UMA PALAVRA CELEBRADA E PARTILHADA

Voltando de novo à experiência do teologado, devo precisar que o contacto com a Palavra que me marcou mais profundamente foi aquele vivido na Eucaristia. Nunca agradecerei o suficiente a Deus pela experiência da celebração eucarística feita com calma, sem pressa, ao entardecer. Aquela hora (sessenta minutos!) que coroava o nosso dia nunca me pareceu longa (bem, talvez exagere!). E não porque os nossos formadores fossem particularmente «eloquentes». Dois já faleceram: o P. Mario Casella e o P. Francesco de Bertolis. A «palavra» não era o seu forte, mas a «beleza» do seu testemunho de vida, essa sim, era eloquentíssima.

Celebrada ao final do dia, sentados à volta do ambão e do altar, aquela Eucaristia diária era o encontro mais belo e repousante da jornada. A escuta e a partilha da Palavra, o partir do mesmo Pão em fraternidade, comunicava-nos uma sensação de paz, de serenidade, de alegria profunda que era o «salário» da jornada. Aquela Palavra celebrada e partilhada marcou efectivamente a minha vida.

Jovem recém ordenado, destinado ao postulantado de Coimbra (Portugal), recordo ter ficado (quase) «escandalizado» ao ver que a Eucaristia comunitária durava apenas meia hora. A minha primeira «luta» enquanto jovem formador foi a de a elevar ao menos para 45 minutos.

Creio que uma vida comunitária vivaz e jovial nasça (sem querer absolutizar, naturalmente) à volta da Eucaristia, celebrada como momento privilegiado de fraternidade.

Não tenho particularmente boa memória em recordar o passado, pelo que evoco de bom grado os últimos anos, vividos na comunidade da casa provincial de Lomé-Cacaveli (Togo). Um dos momentos mais bonitos que vivemos como comunidade foi o da celebração da Eucaristia na tarde de segunda-feira, jornada comunitária. A partilha de vida, orientada e iluminada pela Palavra, reforçou as nossas relações, apesar das nossas fortes diferenças culturais, temperamentais, de sensibilidade e de idade.

Confidencio-vos (sem querer julgar) que certas Eucaristias celebradas à pressa (de 'pé' como a páscoa hebraica!) e em horários um tanto «inconvenientes» (como caçadores!) deixam-me o coração bastante frio e adormecido. Talvez uma maior atenção no discernimento do horário mais oportuno e uma maior generosidade no tempo destinado à Eucaristia poderiam ser o «segredo» para abrir o «jardim fechado» da Esposa (Cântico 4, 12) e fazer-nos entrar juntamente com o Esposo para comer e beber com Ele e inebriar-se com os seus bens (5, 1).

Esta dupla mesa da Palavra e da Eucaristia são os dois braços da «Mãe» ou «Esposa» que nos convoca à sua volta, nos faz sentir em «nossa casa», faz crescer o «sentido de família» e de fraternidade: «Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás contente. A tua esposa será como videira fecunda na intimidade do teu lar; os teus filhos serão como rebentos de oliveira ao redor da tua mesa» (Salmo 128, 2-3).

3.         UMA PALAVRA ENCARNADA

A minha primeira experiência de missão em África (Togo-Gana-Benim) depois de 7 anos como formador em Portugal foi particularmente forte e entusiasmante, como, aliás, para a maioria de nós missionários, suponho. E isso, apesar das dificuldades iniciais, inerentes à nossa missão de «portadores da Palavra», isto é o esforço da inserção numa nova cultura (li e sintetizei tudo o que encontrei sobre a cultura ewe) e o estudo da língua local (além do francês que não dominava).

Os primeiros meses foram particularmente eufóricos. O P. António Oliveira, um compatriota, com quem tinha trabalhado em Portugal (também ele no Paraíso!), acolheu-me na missão de Afanya (Togo). A simpatia e o acolhimento das pessoas e o amor que sentia por elas (com uma boa dose de ingénuo filantropismo!) tornavam-me sorridente e faziam-me sentir bem no meio delas. Também aqui – desculpai o desabafo! – experimentava desconforto e sofrimento por certos modos demasiados despachados (quando não bruscos e ásperos) no acolher as pessoas, que certamente não «honravam» nem facilitavam o acolhimento da Palavra. Com o tempo compreendi que, por vezes, se tratava de uma «fachada» de defesa, uma estratégia para enfrentar o mar de necessidades e de sofrimentos dos pobres, perante os quais uma pessoa se sentia impotente. Muitas vezes, por detrás de certos temperamentos ásperos escondia-se amor verdadeiro, capaz de sacrificar-se pela gente.

O entusiasmo do «primeiro amor» não foi sem sombras. A minha primeira destinação foi Liati (Gana). Bem cedo tive de enfrentar as dificuldades reais da vida missionária. Não apenas as físicas como a doença (após pouco mais de um ano tive de ser repatriado!). De facto tinha chegado a Liati num momento particularmente crítico e delicado, de forte e grave tensão devida ao afastamento forçado de um colega. Foi o meu «baptismo de fogo».

Depois chegaram as primeiras dificuldades apostólicas. Liati era formada por uma trintena de comunidades dispersas num contexto de maioria protestante e em parte animista. Eram comunidades bastante pequenas, caracterizadas pela pobreza de meios e muitas vezes também de pessoal. Quando ia visitar algumas delas, particularmente «desconjuntadas», sentia todo o peso daquele «levar a Palavra». O sorriso (que graças a Deus nunca me faltou) escondia frequentemente o sofrimento que tinha dentro de mim.

Por vezes, conduzindo o velho Land-Rover (que com frequência agravava ulteriormente a situação, deixando-me apeado na estrada), dirigindo-me para aquelas comunidades, o coração apertava-se e lamentava-se perante a perspectiva de me encontrar só diante de um pequeno grupo de cristãos ou catecúmenos meio amorfos, com um pobre catequista que mal compreendia o inglês. Também a mim me apetecia gritar como Elias ou Jeremias e outros: «Basta, não aguento mais!». Diante daquele pobre «resto de Javé», eu pobre como eles, meio balbuciante (na língua local e no inglês que não dominava), sentia cair sobre os meus frágeis ombros todo o peso da celebração.

Muitas vezes o Senhor teve de repetir e gritar aos ouvidos do meu coração o que disse a Josué: «Sou Eu que te ordeno que sejas firme e corajoso. Portanto, não tenhas medo e não te acovardes, porque Javé teu Deus está contigo» (Josué 1, 9). E então quantas vezes experimentei com estupefacção que aquela Palavra se apoderava de mim e da assembleia, aquecendo-nos o coração, e acabava-se na alegria da festa. Esta depois prolongava-se diante de um bom prato de arroz com um pedaço de frango, quando tinha sorte, ou porventura à volta de uma grande bacia de vinho de palma partilhado alegremente.

A Palavra tinha operado o milagre. Mas antes tinha-me pedido para «oferecer» o meu corpo e o meu coração, à maneira dos cinco pães de cevada para a multiplicação do pão. A Palavra ama e quer «encarnar». Dir-se-ia que, desde que o fez na carne dócil e no coração acolhedor do Logos, ganhou gosto nisso.

A experiência de «encarnação» abriu-me os olhos para ver e apreciar a beleza e os feitos da Palavra encarnada em tantos colegas, embora tendo de lutar com as pedras, os cardos e os espinhos. Com quanta simpatia e gratidão recordo o P. Eugenio Petrogalli que, com o seu entusiasmo e zelo apostólico, me iniciou no trabalho missionário em Liati! E muitos outros. Todos nós conhecemos um bom número deles! Mas gostaria de mencionar também o P. Fabio Gilli que continua a iluminar tantos de nós com a Palavra que sai dos seus lábios depois de ter atravessado o crisol da provação da sua cegueira.

Creio que não honramos a Palavra quando nos limitamos a ver os limites e os defeitos das pessoas: dos nossos colegas e das gentes. Entre as pedras e os espinhos também há espigas douradas que ondulam ao vento. Cada um de nós traz consigo espaços de bondade, acolhimento e fecundidade onde a Palavra operou o milagre do florescimento.

4.         UMA PALAVRA CRUCIFICADA

Encarnar a Palavra comporta riscos. Riscos para a Palavra e para nós mesmos. A nossa humanidade geme sob o «jugo» desta Palavra embora, com a graça, ele devesse ser «suave e leve» (Mateus 11, 30). Por vezes a nossa estrutura humana e psicológica não resiste perante as exigências de uma vocação portadora da Palavra. Ou talvez a presunção ou a negligência nos tenham levado a confiar demasiado nas nossas forças e a ser pouco atentos às nossas fraquezas. O facto é que a Palavra é «mortificada» na fraqueza da carne e na distracção do espírito. É «enfraquecida» nas nossas palavras sem fôlego ou até «acorrentada» pelo nosso contra-testemunho (2 Timóteo 2, 9).

Nestes últimos anos os pastores da Igreja foram «dados em espectáculo ao mundo» (1 Coríntios 4, 9), um triste espectáculo de fraqueza e de miséria que entristece todos. A Palavra surge crucificada nas vítimas que ofendemos. Mostrando atenção para com elas, somos chamados a curar as feridas infligidas na própria Palavra pelas palavras sedutoras e envenenadas do inimigo que desde o início move guerra à Palavra (Génesis 3, 1-5). Nas chagas destas vítimas escondem-se as do Senhor, o Logos crucificado. E nós beijámo-las.

Ocorre-me pensar que também as chagas infligidas pelo pecado no coração do «portador da Palavra» devem ser respeitadas. Quando reconhecidas com humildade e arrependimento, também essas são assumidas pelo Crucificado. Também essas devem ser beijadas e curadas com compaixão.

Como provincial tive por vezes de enfrentar estas feridas malgrado meu. Vem-nos a tentação de «cobrirmos o rosto» (Isaías 53, 3). No fim de contas, cada um carrega consigo as suas fraquezas, dum tipo ou doutro. As dos outros recordam-nos as nossas. Ter a coragem de «tocar» aquelas feridas torna-nos humildes e compassivos e ajuda-nos também a nós porque só «perdoando» os outros podemos perdoar-nos a nós mesmos e curar certas memórias.

Entrar em intimidade com o outro faz-nos ver não apenas o sofrimento da fraqueza mas também a vontade de redenção, o desejo sincero de deixar-se plasmar pela Palavra, de deixar-se «refazer» pelas mãos do oleiro (Jeremias 18, 6). E esta pode ser a ocasião para um novo florescimento, talvez menos vistoso porque os ramos apresentam as feridas infligidas pela tormenta, mas os frutos são mais maduros e mais doces. Conservo uma recordação profunda de amizade e de apreço por certos colegas que, com determinação, empreenderam o caminho da libertação, enfrentando o deserto da purificação ou o caminho doloroso do Calvário.

No fim, tudo é graça. Também os erros e as fraquezas. Numa mensagem escrita umas semanas antes do seu regresso ao Pai, o P. Francesco de Bertolis dizia-me: «Ao ler as tuas palavras lembrei-me dos poucos anos passados convosco em Roma – entre os mais belos da minha vida… inclusive os erros… Os erros “aprendidos” na vida valem muito mais do que aqueles nunca cometidos». Conservo esta mensagem como uma última pérola de sabedoria humana e cristã deste colega.

Quem somos nós para julgar? O coração do homem é um mistério de luzes e sombras. A Palavra correu os seus riscos confiando em nós, apesar de conhecer a nossa fraqueza. «Apostou» em nós e por vezes foi «afortunada», outras vezes não. Também nós, «homens da Palavra», «arriscámos». Ninguém nos garantiu que tudo correria bem: que encontraríamos as condições ideais para crescer como pessoas; que encontraríamos comunidades acolhedoras que nos apoiariam no momento da fraqueza; que seríamos capazes de enfrentar todas as situações de stress a que nos submeteria o serviço da Palavra.

Mas, de uma maneira ou de outra, antes ou depois, a Palavra acabará por nos conduzir, a todos nós, àquele «cume» onde ela foi elevada e «exibida» na pessoa de Cristo, o Logos. Lá onde ninguém gostaria de ir, nem Pedro e tanto menos nós, mas nem sequer Jesus. A Palavra acabará crucificada em nós. Pode sê-lo de muitos modos, frequentemente na doença ou na idade avançada. As minhas duas canadianas, fiéis «companheiras» na doença, por vezes lembram-me os dois braços da cruz! Foi o caminho do Mestre, que poderia esperar o discípulo?

Recordo ainda a viva impressão que me causou o nosso colega P. Ivo do Vale, quando o visitei pela última vez no hospital de Viseu (Portugal) no verão de 2009. Uma vida apaixonada pela Palavra, que tanta «graça» tinha encontrado nos seus lábios, agora estava ali transfigurada pelo cancro. E no entanto naquele corpo já sem «graça» a Palavra resplandecia, num modo novo, em toda a sua Beleza, no sorriso de serenidade, na palavra de confiança e na atitude de abandono do P. Ivo. Mas todos conhecemos muitíssimos destes exemplos. Faz-nos bem «visitá-los» nas nossas casas de acolhimento para os idosos e doentes. Lá revela-se um outro rosto da Palavra, o penúltimo, e é importante sabê-lo reconhecer e acolher.

5.         UMA PALAVRA FLORIDA

Mas digamo-lo também: se a Palavra arriscou em nós e nós apostámos a nossa vida na Palavra é porque no fundo tínhamos uma forte esperança que ambos sairíamos a ganhar. Creio que a grande maioria possa dizer comigo que estamos satisfeitos e felizes por ser missionários e que nenhuma tristeza poderá ser tão forte que amarfanhe esta alegria e serenidade profunda (Salmo 16). Acho que poderíamos dizer como Daniel Comboni que, se tivéssemos tido cem vidas, tê-las-íamos empregues todas pela Missão da Palavra. O investimento revelou-se óptimo.

Na vida de cada missionário nunca faltaram as alegrias, para além dos sofrimentos do ministério ligados também à nossa condição de «pedras escondidas», como recordava Comboni. Não creio que o desejo de tantos missionários, muitos dos quais idosos e em mau estado, de «regressar à missão» seja para ir em busca do «sacrifício» ou por puro zelo missionário. É porque o Senhor nos deu muitas consolações por entre as lágrimas da sementeira (Salmo 126, 6).

Que alegria ver as comunidades que iniciámos em Adidogome-Lomé (Togo), há pouco mais de vinte anos, com um pequeno grupo de jovens, sob um tecto de folhas de palmeira, tornaram-se comunidades florescentes e até novas paróquias! Um pouco de são «triunfalismo» faz-nos bem! É preciso permitir que a Palavra festeje também os seus «sucessos» e mostre a sua vitalidade. Certas atitudes de querer cortar as asas do entusiasmo destas comunidades nascentes são como pretender que a semente da Palavra permaneça enterrada para sempre e não se desenvolva na árvore frondosa que é chamada a tornar-se (Mateus 13, 31-32).

Como não rejubilar ao ver a gente que desde as primeiras horas da manhã até à noite passa individualmente ou em pequenos grupos pela nossa capela de Cacaveli-Lomé, para partilhar alegrias e penas com a Palavra-Presença humilde e fiel no Tabernáculo? Ou como não enternecer-se perante as filas de penitentes que, desde o início da tarde até ao fim do dia de sábado, vêm procurar no sacramento da reconciliação a Palavra-Misericórdia que perdoa e reconforta?

Como não alegrar-se ao ver crescer o número dos combonianos de outros continentes e culturas que estão a tomar o relé para continuar, com novas energias, a «corrida da Palavra»? É o nosso sonho, incompleto na nossa vida, que prossegue neles.

6.         UMA PALAVRA QUE NOS CONDUZ

Hoje, olhando para trás por alguns momentos, em direcção à valada, podemos ver melhor as diversas vertentes do caminho da nossa vida, apesar da distância no tempo. E damo-nos conta de como fomos conduzidos pela mão (Oseias 11, 3-4). Descobrimos que nós, «portadores da Palavra», na realidade fomos, nós mesmos, «levados pela Palavra».

A Palavra é a nossa Mãe, a nossa companheira, antes ainda de ser «semente» por nós espalhada. Quanto mais reflectimos sobre a nossa experiência, mais descobrimos com estupefacção que a Mão de Deus nos conduziu ao longo da nossa vida e percurso vocacional. E sentimos que aquelas palavras ditas a Jeremias eram dirigidas também a nós: «Antes de te formar no seio materno, eu te chamei» (Jeremias 1,5).

Na proximidade da minha ordenação, o meu pai fez-me esta confidência: «Filho, antes de teres sido concebido (sou o primeiro dos sete filhos), com a tua mãe fizemos uma oração a Deus oferecendo-lhe o nosso primeiro filho, se fosse rapaz. O Senhor acolheu a nossa oferta! Não quis dizer-to antes para não te condicionar». Conservo no coração (esta só para mim!) uma outra confidência, da minha mãe, que me fez vir as lágrimas aos olhos!...

Como não ver o «dedo» de Deus, por exemplo, na minha professora primária que me apresentou ao animador vocacional comboniano ao passar pela minha aldeia o qual, apesar do seu entusiasmo e simpatia, não tinha conseguido convencer ninguém a ir para o seminário? A sua palavra foi porta-voz da Palavra que naquele dia lançou as redes ao meu coração!

Como não ver o «dedo» de Deus naquelas duas raparigas irlandesas com quem trabalhei num restaurante londrino durante as férias do já distante verão de 1977, que, ao descobrirem que eu era seminarista, me encorajaram a ir em frente? As suas palavras simples mas sinceras deram uma força nova à Palavra que trazia em mim. Tinha medo de dar à Palavra o meu «sim» definitivo com os votos perpétuos. Aquilo que aquelas raparigas «viram» em mim, despertou o fascínio da Palavra. E ali, naquele restaurante, naquele dia disse o meu «sim» definitivo à Palavra que no coração me prometia dar um sentido à minha vida. Um sentido que aqueles numerosos jovens companheiros de trabalho não tinham ainda encontrado.

Quantas vezes a Palavra me surpreendeu no sorriso de uma criança, na palavra cheia de sabedoria de um idoso animista, num gesto de simpatia de um desconhecido! Veio ao meu encontro no gesto amigo ou na palavra de encorajamento do colega com quem vivia. Tocou-me o coração com o testemunho de confiança e de simplicidade dos pobres. Edificou-me com gestos de generosidade de alguns cristãos empenhados na comunidade cristã.

A Palavra cuidou verdadeiramente de nós!

7.         UMA PALAVRA DE REPOUSO

A primeira Palavra de entrada e acolhimento no «mundo futuro» que um missionário espera ouvir é: «Muito bem, servo bom e fiel, foste fiel no pouco… toma parte na alegria do teu Senhor» (Mateus 25, 21). Esperando que a Palavra que nos há-de julgar será aquela que nós anunciámos, a Palavra de Misericórdia!...

A Palavra não nos entrega nas mãos do Juiz mas coloca-nos amorosamente nas Mãos de Deus. A Palavra traz-nos «a promessa de entrar no repouso» (Hebreus 4, 1). «Apressemo-nos portanto a entrar naquele repouso» (4, 11). A Palavra, antes de ser objecto da nossa acção, é uma Palavra que procura e oferece repouso, primícias daquele «repouso» definitivo do Amor que satisfará finalmente todas as procuras e sedes do coração humano (Salmo 127; 131).

Uma das mais belas experiências de paz e serenidade, nestes últimos anos, foi a prática da Lectio Divina. A Palavra ofereceu-me um verdadeiro repouso espiritual e psicológico. Desde há alguns anos, para coroar a Lectio sobre o evangelho do dia leio um trecho do Cântico dos Cânticos (que dividi em 30 porções, uma para cada dia do mês). Tomo-o como 4º momento da Lectio, isto é a «contemplação». «Contemplar» o Cântico dos Cânticos, juntamente com o cultivar a «comunhão dos santos» (particularmente na recitação do terço), são as minhas duas maiores alegrias «espirituais» nestes últimos anos. O Cântico é a Palavra feita dança e ritmo, beleza e fascínio, juventude e entusiasmo, júbilo e emoção, amor e paixão. Deixar-se levar pela contemplação desta Palavra é deixar-se envolver numa dança inebriante que torna ágeis os pés e enche o coração de alegria de viver.

O repouso na Palavra renova o seu portador para o despertar cada manhã (Isaías 50, 4), contagiando-o com aquela urgência da missão encarnada em Jesus (Marcos 1, 35-39). A Palavra não tem repouso (e portanto nem o seu portador) enquanto o «Hoje» do sábado de Deus não tiver chegado.
Roma, 15 de Março de 2012
P. Manuel João Pereira Correia
Missionário Comboniano

PROPOSTA PARA A PARTILHA DE GRUPO

  1. UMA PALAVRA APAIXONANTE: Partilhar a nossa relação com a palavra: a experiência inicial de ser «seduzidos» pela Palavra, o papel tido na nossa vida, as nossas fraquezas pessoais…
  2. UMA PALAVRA CELEBRADA E PARTILHADA: Partilhar as nossas experiências relativamente à celebração e partilha sobre a Palavra nas nossas comunidades
  3. UMA PALAVRA ENCARNADA: Partilhar factos ou circunstâncias concretas da nossa experiência pessoal sobre as implicâncias de ser «portadores da Palavra.
  4. UMA PALAVRA CRUCIFICADA: Partilhar os nossos sentimentos e atitudes perante as fraquezas e contra-testemunhos pessoais e colectivos.
  5. UMA PALAVRA FLORIDA: Partilhar experiências concretas sobre o poder de transformação e fecundidade da Palavra de Deus no nosso apostolado.
  6. UMA PALAVRA QUE NOS CONDUZ: Partilhar experiências pessoais sobre a presença contínua e discreta de Deus que guia e conduz a nossa vida.
  7. UMA PALAVRA DE REPOUSO: Partilhar a nossa experiência pessoal de oração sobre a Palavra de Deus: consolação, encorajamento, estímulo apostólico…