Regra de Vida: Cada parte é ordenada ao todo como o imperfeito ao perfeito

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“A Regra de Vida é lei humana na qual confluem dois elementos inseparáveis; por um lado, é algo ordenado a um objectivo, por outro, é exactamente isto, uma regra, medida regulada e moderada por uma medida superior que, por sua vez, é dúplice: a lei divina e a lei natural. O fim da lei humana é o proveito dos homens segundo estas três coisas: que seja em harmonia com a religião, dado que deve adaptar-se à lei divina; que seja de ajuda à disciplina, dado que tem de harmonizar-se, por princípio, com a lei natural; e que promova a saúde pública, dado que tem de ser ordenada à utilidade humana.” (P. Erasmo Norberto Bautista Lucas, mccj)

 

CADA PARTE É ORDENADA AO TODO
COMO O IMPERFEITO AO PERFEITO
[1]

Considerações sobre a Regra de Vida

Introdução

A Regra de Vida é lei humana na qual confluem dois elementos inseparáveis; por um lado, é algo ordenado a um objectivo, por outro, é exactamente isto, uma regra, medida regulada e moderada por uma medida superior que, por sua vez, é dúplice: a lei divina e a lei natural. O fim da lei humana é o proveito dos homens segundo estas três coisas: que seja em harmonia com a religião, dado que deve adaptar-se à lei divina; que seja de ajuda à disciplina, dado que tem de harmonizar-se, por princípio, com a lei natural; e que promova a saúde pública, dado que tem de ser ordenada à utilidade humana.

Da harmonia da lei com a religião resulta a sua honestidade; a lei deve ser honesta. Da sua relação com a disciplina deriva a sua possibilidade; a lei deve ser possível segundo a natureza e os costumes do país. A lei deve ser adequada aos lugares e aos tempos; a lei deve ser, portanto, oportuna para a disciplina; isto quer dizer que deve ser adequada às circunstâncias; E visto que a lei humana é um conceito da razão prática, que orienta os actos humanos, para mudá-la e modificá-la, os motivos devem ser dois: um, que depende da razão, e o outro, dos homens, cujos actos são regulados por esta lei. No nosso caso, a Regra de Vida guia o nosso trabalho missionário, determina o nosso modo de proceder, regula a nossa organização.

Por parte da razão, a Regra pode ser mudada ou modificada, sendo conatural na razão humana avançar gradualmente daquilo que é imperfeito para o que é perfeito; vemos de facto que, no progresso humano, os primeiros pesquisadores chegaram só a descobertas imperfeitas que foram depois aperfeiçoadas pelos seus sucessores.

A mesma coisa acontece também na ordem prática, isto é no campo da acção. De facto, os primeiros que procuraram descobrir alguma coisa de útil para a construção da sociedade humana, não podendo sozinhos ter em conta tudo, fixaram normas imperfeitas e cheias de lacunas, que foram depois modificadas e substituídas por outras com menos carências no serviço ao bem comum. Da parte dos homens, ou seja da nossa parte neste momento, a Regra pode ser mudada ou modificada dada a mudança das condições humanas, que nas suas diferenças pedem tratamentos diferentes[2] enquanto cada parte é ordenada ao todo, como o imperfeito ao perfeito, e o indivíduo é parte da comunidade…[3] Deixando-me guiar por estas orientações de fundo, proponho-vos as seguintes considerações.

0. A nossa organização

A quarta parte da Regra de Vida tem este título: O serviço da autoridade no Instituto. Do ponto de vista formal, compreende seis secções; a primeira concerne a concepção de Governo e Autoridade; a segunda trata da Comunidade Local; a terceira ocupa-se da Província; a quarta fala da Direcção-Geral; a quinta é sobre o Capítulo Geral; a sexta estabelece o procedimento concernente à Ausência e Separação do Instituto. Do ponto de vista dos conteúdos, é subdividida em 59 artigos, do
nº 102 ao 161. Esta quarta parte pode ser portanto interpretada como discurso colectivo, ainda hoje convincente, inovativo e transformador, para a convivência em caminho, para a convivialidade como elemento distintivo das suas componentes, certamente sempre perfectível. De quanto foi dito, portanto, deduz-se que a organização que adoptámos para realizar a missão é “cordial” mas complexa, em virtude das presenças, obras e serviços. As presenças são as comunidades, reunidas em delegações ou províncias. As obras são as instituições educativas, sanitárias, paroquiais, obras sociais, etc., que as comunidades, ou as delegações ou as províncias, gerem, e os serviços são as actividades, quer próprias quer de outros, que as pessoas desenvolvem no seio do Instituto.

0.1 Por princípio irmanados por Cristo para continuar a sua missão no sulco de São Daniel Comboni

A quarta parte nasce deste princípio: nós Missionários Combonianos do Coração de Jesus somos homens comuns e normais, irmanados por Cristo mediante a inspiração originária de São Daniel Comboni para continuar a sua missão; através da nossa organização esforçámo-nos por consolidar os laços de comunhão, fraternidade e amizade, com acção e participação. Entre nós, a união e a comunhão são vitais, dado que somos um corpo que se organiza em comunidades que querem viver o
Evangelho e realizar o envio. E não há nada que seja de maior ajuda a esta nossa união do que a obediência ao Superior Geral e aos superiores que o coadjuvam, coisa que temos de compreender à luz da vida de Jesus obediente ao Pai até à cruz. Então o exercício da autoridade ajuda a viver a comunhão não como princípio entretecido de normas, mas como um estilo ético de existência compartilhada e realizada e por isso tem necessidade de homens-guia que, com paciência, cordialidade e esperança, recordem que o importante é a urgência evangélica de excitar, despertar e evocar o Reino em todas as sociedades, criar processos de Reino também em âmbitos aparentemente satisfeitos, desorientados ou distantes de Deus; homens com uma autoridade evangélica que persuade, motiva e estimula a uma conversão identitária do Instituto em direcção a este presente. Tudo isto implica formar-se em humanidade, cordialidade e gratuidade, valores que exigem uma predisposição antropológica que nasce da virtude e sobretudo do calor da fé pela graça sobrenatural, para abrir caminhos à presença do Bem, da Verdade, da Justiça, abraçando com o amor de Jesus Cristo quantos são aflitos pela fraqueza humana[4].

0.2 Modalidades de aproximação

A árvore colhe nutrimento da terra húmida, através das raízes, e as suas folhas recebem luz e cor da atmosfera circunstante. Do alto da sua copa vê-se um amplo horizonte. As suas raízes profundas garantem a sua vida. Fôlego e enraizamento, altura e profundidade, são estas as duas perspectivas características da leitura e releitura de um texto, no nosso caso do texto da Regra de Vida. Deste ponto de vista, quem se dispõe a esta leitura e releitura deve procurar evitar dois excessos: o primeiro, uma leitura e releitura aparentemente pia e devota mas que é feita com uma atitude individualista, sentimental e fundamentalmente débil; o segundo, uma leitura muito estudada, que pretende ser muito objectiva mas não é acompanhada por uma vivência profunda de espiritualidade, de humanidade, de missão. Trata-se de dois modos parciais de ler e reler. Para evitar estes extremos, quem se aproxima ao texto, deverá procurar fazer uma leitura e releitura fiel e criativa, ampla e profunda. A estas duas orientações fundamentais, que concernem o autor e o leitor, é preciso
acrescentar outras duas: a perspectiva do texto no seu conjunto e na sua profundidade. Estas quatro orientações basilares são indicadas com quatro palavras-chave: perante o texto, ou seja a leitura actual; atrás do texto, isto é, o autor ou os autores; no interior do texto, e no conjunto do texto, ou seja, aquilo que o texto mesmo diz; sob o texto, noutras palavras, o significado profundo desta mensagem para a comunidade dos membros que se reúnem para a ler, reler e transmitir como um precioso álbum de família, como acontece durante a fase do postulantado, do noviciado, do escolasticado e sucessivamente.

0.3 O património espiritual perenemente válido da humanidade

Considere-se que um povo é antes de tudo um repertório de segredos que requerem um esforço para ser descobertos e compreendidos, dizia Ortega no início do século XX na sua obra A rebelião das massas[5]. Actualmente, diversos povos compõem o Instituto e portanto, nele, existem diversos repertórios de segredos que intervêm na leitura, compreensão, interpretação e execução de quanto legislado num texto constitucional por um povo, numa certa época, segundo uma tradição, neste caso, principalmente a ocidental. Eis então que a revisão e a revisitação – este voltar a visitar com espírito crítico – da Regra de Vida exigem o conjugar-se harmonioso do repertório de segredos trazidos pelas pessoas provenientes de povos diferentes mas sustentados por uma espécie de princípios gerais e indemonstráveis, de per si óbvios e evidentes para qualquer um, e que constituem o património espiritual da humanidade: reconhecer, não obstante o mudar dos tempos e os progressos do saber, um núcleo de conhecimentos filosóficos cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, por exemplo, nos princípios de não contradição, de finalidade, de causalidade, como também na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem; pense-se além disso em algumas normas morais fundamentais que resultam comummente compartilhadas. Estes e outros temas indicam que, prescindindo das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos em que é possível reconhecer uma espécie de património espiritual da humanidade[6].Trata-se, portanto, de uma espécie de gramática natural segundo Bento XVI, sobre a qual assentam as disposições mais pormenorizadas, que devem ser impostas à gente em sintonia com as suas condições, motivo pelo qual, da parte dos homens cujos actos são por ela regulados, a lei pode ser legitimamente modificada dada a alteração das condições humanas que, sendo diferentes, exigem tratamentos diferentes[7]. Portanto, é legítimo alterar uma lei se, alterando-a, se contribui para o bem comum[8].

1. Recuperar fraternidade

Hoje, o direito ocupa-se sobretudo de definir os limites e as condições do exercício da autoridade, mas não é feita uma reflexão sobre o seu significado e sobre os seus fundamentos. Todavia, esta reflexão é necessária porque a autoridade entrou em crise, quer na família quer na escola e, portanto, em mais de uma instituição. Esta crise percebe-se em modos diferentes: por um lado, observa-se a passagem de uma ideia de autoridade ligada ao sacro, ou seja intocável, a uma ideia de autoridade que entra no âmbito da negociação; por outro, esta ideia foi transformada também pelo afirmar-se da igualdade de todos os homens, independentemente da sua condição, sexo, idade, e pelo afirmar-se da espontaneidade das pessoas que devem pensar por si. Denunciou-se – com razão – o autoritarismo, ligado a um tipo de manipulação e ao exercício de uma violência real, mas, deste modo, abre-se a porta ao perigo e ao risco de sucumbir a um outro tipo de excesso que é o do laxismo ou libertinagem.

1.1 Modelo relacional e dialógico do exercício da autoridade

No documento da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica – CIVCSVA – “Para vinho novo, odres novos”, encontramos esta proposta que é radical e, ao mesmo tempo, simples: recuperamos fraternidade. Na mais ampla visão sobre a vida consagrada elaborada pelo Concílio, passou-se da centralidade do papel da autoridade à centralidade da dinâmica da fraternidade. Por isso a autoridade não pode senão estar ao serviço da comunhão: um verdadeiro ministério para acompanhar os irmãos e as irmãs em ordem a uma fidelidade consciente e responsável[9]. Segue-se que a comparação entre irmãos e a [...] escuta de pessoas individuais tornam-se um lugar indispensável para um serviço de autoridade que é evangélico[10].

Todavia, na vida consagrada, de algum modo perdurou durante demasiado tempo uma mentalidade verticista da autoridade, caracterizada nestes termos: “o recurso a técnicas de manager, ou a aplicação espiritualizante e paternalista de modalidades consideradas expressão de “vontade de Deus”, são redutivas face a um ministério chamado a confrontar-se com as expectativas dos outros, com a realidade quotidiana e com os valores vividos e partilhados em comunidade[11]. De facto, não pode deixar de preocupar, sublinha o documento, a permanência de estilos e práticas de governo que se afastam ou contradizem o espírito de serviço, a ponto de degenerar em formas de autoritarismo[12].

Diferentemente deste género de compreensão, de facto preocupante, os convites do documento citado estão em linha com este desejo de maior horizontalidade; encorajam a tomar consciência do facto que a missão do nosso Instituto é um projecto comum, que necessita de colaboração. Deve ser portanto encorajado um serviço de autoridade que chame à colaboração e a uma visão comum no estilo da fraternidade[13] para convencer-nos de que a autoridade é, de per si, um serviço e não um meio para a auto-afirmação de quem a recebe[14]; para resistir à tentação de recorrer, no exercício do governo, a soluções autoritárias[15]; para praticar mais a rotação dos encargos[16]; e para promover as relações inter-geracionais no seio do Instituto[17]. À luz destas orientações, faço aqui algumas considerações sobre como actualizar o serviço da autoridade, tiradas da minha experiência na vida consagrada e noutros âmbitos de responsabilidade colegial, apresentando-as dentro deste horizonte de “fraternidade” que o citado documento sustenta.

1.2 A mentalidade da época

A apresentação das considerações aqui propostas pressupõe que as interpretações actuais das estruturas organizativas atrás das quais se encontra a vida consagrada, reentrem na mentalidade da época e sejam portanto sujeitas às dúvidas da cultura ambiental hodierna sobre a autoridade. Uma forte relativização da autoridade coexiste paradoxalmente com o pedido de que esta seja exercida sem hesitação. Quem governa, por um lado, deve confrontar-se com uma palpável nostalgia por uma autoridade paternalista que volte a responder às necessidades individuais e se contraponha assim ao anonimato que submerge as reestruturações feitas pelo Instituto. Por outro, deve dar ouvidos ao pedido insistente de incrementar estruturas de governo mais participativas.

Entre o autoritarismo e o laxismo é preciso criar, sem dúvida alguma, um termo intermédio, ou mais concretamente, é necessário precisar o sentido, a legitimidade e o fundamento da autoridade, que é um aspecto da educação, da formação permanente. Assim, a leitura, compreensão e actualização do conteúdo da quarta parte da Regra de Vida, dedicado à autoridade e ao seu exercício, exige hoje uma reconsideração à altura dos tempos mas sobretudo à luz da crescente multiculturalidade do Instituto porque um povo é acima de tudo um repertório de segredos que requerem algum esforço para serem descobertos e compreendidos[18]

E como as estruturas da comunhão – o serviço da autoridade no Instituto – podem ser consideradas na perspectiva canónica e na perspectiva teológico-espiritual – duas possíveis perspectivas igualmente importantes – é inevitável ter isso em conta de maneira equilibrada no momento da revisão e revisitação da Regra de Vida, mesmo se a perspectiva canónica é a mais difícil porque requer muito esforço, horas de trabalho paciente e de diálogo para poder abrigar na tradição canónica as novidades que o Espírito Santo suscita no Instituto, e as estruturas de governo constituem, na comunhão ou visão teológico-espiritual, uma dimensão puramente canónica. Ambas as perspectivas representam o fio condutor do tecido do nosso texto constitucional actual. A tal propósito, são muito iluminantes estas considerações: Temos de reconstruir uma espiritualidade do serviço da autoridade que lute contra o descrédito que está a crescer, a crítica a que é submetido por defeito, as expectativas exageradas de competência que se exigem dela, a inércia perante o individualismo que mina a consciência do bem comum e a ingenuidade dos modelos excessivamente horizontalistas da autoridade. Esta espiritualidade viria de uma graça: a de reconhecer o valor de missão que o serviço da autoridade tem dentro de si e o potencial de vida para os outros que esta missão comporta[19].

1.3 Governo e autoridade

O conteúdo da quarta parte da Regra de Vida afunda as próprias raízes nesta convicção fundamental: a acção – no caso do Instituto, a acção missionária – não é mais possível no isolamento; ser isolados é como não ter a capacidade para agir. A acção e o discurso têm necessidade da presença de outros. Em defesa disto, vale a pena recordar que o grego e o latim, diversamente das línguas modernas, têm duas palavras diferentes e todavia ligadas entre si para indicar o verbo “agir”. Aos verbos gregos archein (começar, guiar e por fim governar) e prattein (atravessar, realizar, levar a termo) correspondem os verbos latinos agere (fazer mover, guiar) e gerere (cujo significado originário é “levar”). É como se cada acção fosse dividida em duas partes, o início, realizado por uma só pessoa, e o fim, onde muitas se unem para “levar” e “levar a termo” a acção dando o seu contributo. Não são só as duas palavras a estar ligadas entre si de modo semelhante, mas muito semelhante é também a história do uso destas palavras. Em ambos os casos, a palavra originariamente designava só a segunda parte da acção, a conclusão – prattein e gerere – tornou-se a palavra aceite para a acção em geral, enquanto as que designavam o início da acção assumiram um significado preciso, pelo menos na linguagem política. Archein passou a indicar principalmente governar e guiar, se usados de maneira específica, ao passo que agere assumiu o significado de “guiar” para dizer “fazer mover”.

Assim, o papel de iniciador e guia, que era o primus inter pares, tornou-se o do governante.

A autoridade apresenta-se sob formas distintas. Acima de tudo como um carisma ou um ascendente natural, de quem sabe por natureza dirigir. Em segundo lugar, como uma competência, por exemplo, a do perito, do especialista, do conhecedor, segundo as imagens platónicas que representam a autoridade política. Terceiro, como a gestão e a liderança ligadas a um estatuto. Em todos os três casos, o conceito de autoridade implica uma relação vertical ou pelo menos uma certa hierarquia. A primeira forma de autoridade, o carisma, pode mostrar-se ambígua na medida em que, seja na educação e formação seja na política, pode ser exercida pelo melhor e pelo pior. A segunda, a competência, é facilmente justificável na medida em que se controla o objecto e os outros admitem o seu exercício. A terceira, o estatuto, é muitas vezes criticada como arbitrária e artificiosa, na medida em que não é justificada por uma competência real ao serviço dos outros. Todavia, é precisamente no terreno da competência que se observa um deslizamento do conceito de autoridade entre os jovens e adultos, uma diferença de lugar, de posição no tempo.

É neste contexto, julgamos, que se torna imprescindível uma liderança que nasça da escuta do Espírito Santo em comunidade. Que indique, com a própria vida, um caminho possível e real, sem perder a dependência-transcendência, que mostra de modo inconfundível a luz da proximidade de Deus.

Trata-se, antes de mais, de uma liderança que saiba aonde vai. Que tenha um itinerário e saiba mostrá-lo, comunicar e contagiar. Para isso deve identificar-se com as contingências reais do Instituto que serve. Deve saber simplificar, gerar mudanças para poder dar vida à comunidade; deve dar ímpeto, manter e vigiar sobre as mudanças para que não desviem da força carismática; dever ser líder e conjugá-lo com um querer sê-lo que seja evangélico, porque não tem sentido sê-lo à força ou porque não há outro remédio ou porque é o único; deve ser idóneo a construir a comunhão plural que é o instituto no qual, graças à mediação de uma liderança coral e profética, coexistam as iniciativas e as possibilidades, a complementaridade e a novidade. Sabendo que a missão é a alma da comunidade, a autoridade deve ser exercida por homens que descubram a felicidade em guiar um povo que caminha no deserto com ilusões e promessas, com lamentações e recordações, com tendências de eficiência e de excelência, e também com sinais de morte. Assim, portanto, as questões à volta do governo e da autoridade vão golpear o estilo da liderança do ponto de vista da sua assunção e concretização: a autoridade joga-se muito da própria justificação no modo como se a assume e se a exerce. Hoje não basta um estilo qualquer[20].

Ao tratar o exercício do ministério da autoridade é necessário reflectir à volta da responsabilidade para com terceiros, ainda que só de modo simbólico e em vista de uma regulamentação. Os terceiros podem ser os confrades. Três elementos constitutivos confluem aqui, ou seja, o conceito de governar e ser governados, de governo e poder, e da ordem regulamentada que o acompanha, e aqui reentram a personalização e o discernimento: Para o Evangelho, as pessoas são imprescindíveis. Não propõe mandamentos abstractos, válidos em si, sem qualquer relação com quem os propõe e com quem os comunica. O Evangelho opera com apelos, com exortações às pessoas a fim de que levem por diante iniciativas de vida a favor dos outros. Porque é nas pessoas que a missão encontra fontes surpreendentes de gratuidade, de heroísmo no dom de si, de criação de relações fraternas, de disponibilidade à solidariedade, de adaptabilidade no serviço acima e para lá das tradições […] A liderança […] deve ser convicta da prioridade que tem a […] cura personalis[21]. Isto requer, então, ir mais além, à raiz, à procura de uma instância perante a qual se possa dar conta do exercício da autoridade, visto que se trata de pensar a única coisa sobre a qual podemos verdadeiramente fundar, na sua radicalidade, o sentido da vida humana e de uma vida pessoal; caracterizada simultaneamente pela singularidade e pelo valor incondicional que daí deriva.

Em todo o caso, quem governa e exerce a autoridade deverá ser rico de humanidade para que a vontade e a razão do homem, por um lado, se exprimam com as palavras e, por outro, também com os factos, dado que cada um faz compreender que prefere o que realiza com a acção[22]. A tal propósito, é muito clarificador este texto de um homem que viveu em tempos muito difíceis e que dá este conselho: os bons agricultores […] não cultivam só as árvores direitas e altas, mas aplicam também àquelas árvores cujo crescimento foi deformado por uma qualquer causa alguns apoios por meio dos quais se endireitam; a outros cortam os ramos à volta, para que não dificultem o seu crescimento em altura; outros, débeis pela aridez do terreno, adubam-nos, a outros, sofredores pela sombra de plantas estranhas, descerram-lhes o céu[23]. De bons trabalhadores precisa hoje o nosso Instituto, isto é de pessoas que tratem as árvores direitas e altas; endireitem as tortas, podem as frondosas, adubem as débeis, descerrem o céu aos que sofrem no crescimento por uma sombra estranha que os priva da luz.

Conclusão

O exercício da autoridade requer, em quem é chamado a este ministério, acima de tudo humanidade integral, saúde espiritual e estilo empreendedor para que o Instituto seja lugar de misericórdia, menos verticista e mais sinodal; exige fidelidade e prudência, porque a ira é o princípio da ruína do bom governo. A organização que adoptámos para realizar a missão, exposta na quarta parte da Regra de Vida, é cordial, impregnada de fé, mas também complexa. Nesta perspectiva, o conteúdo da quarta parte da Regra de Vida pode ser interpretado como a expressão de um Instituto sempre em construção, onde cada um se sinta acompanhado pelo Espírito Santo e na fraternidade. Quem exerce o serviço da autoridade peça ao Senhor que lhe conceda a audácia do profeta, a fortaleza da testemunha, a clarividência do mestre, a segurança do guia, a mansidão do pai e a proximidade do irmão para iniciar, nos que estão confiados aos seus cuidados, fundando-se sobre o Espírito Santo e deixando-se guiar pelos sábios conselhos dos seus semelhantes, a realização do humilde desejo de participar na obra redentora de Cristo[24]. Governar é, em princípio e no final de contas, um acto de amor, é dar a vida. E o amor é exigente, requer o uso dos melhores recursos, para despertar a paixão e pôr-se em caminho com paciência juntamente com os irmãos. No Instituto, quem exerce o ministério da autoridade deverá ser certamente competente e qualificado, mas sobretudo e antes de tudo rico de humanidade, evitando, em tudo e com todos, ser incorrecto no falar e no agir, cuidando da unidade na diversidade, da identidade na diferença, e da caridade em tudo, sendo uns para os outros amigos no mandato de espalhar “o perfume do Evangelho” (EG 39) e salvaguardando, com alegria e criatividade, aquilo que herdámos de São Daniel Comboni.

P. Erasmo Norberto Bautista Lucas, mccj
Cidade do México, 28 de Agosto de 2018
Festa de Santo Agostinho

 

[1] Cf. Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 234-237; Laudato Si’, 141.

[2] Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, qq.90-97.

[3] Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 90, a. 2.

[4] Cf. Lumen Gentium, 8.

[5] José Ortega y Gasset, La rebelión de las masas, p. 247.

[6] João Paulo II, Fides et ratio, 4.

[7] Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 97, a. 1, solução.

[8] Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 97, a. 2, solução.

[9] CIVCSVA, Para vinho novo, odres novos, 41.

[10] Ibidem.

[11] Cf. ib.

[12] Cf. ib. 43.

[13] Cf. ib. 43.

[14] Cf. ib. 44.

[15] Cf. ib. 45.

[16] Cf. ib. 46.

[17] Cf. ib. 47.

[18] José Ortega y Gasset, La rebelión de las masas, p. 247.

[19] Francisco José Ruiz, Odres nuevos para el gobierno, in Vida Religiosa. Monográfico. 122 (2017), 88 (536).

[20] Francisco José Ruiz, Odres nuevos para el gobierno, in Vida Religiosa. Monográfico. 122 (2017), 75 (523).

[21] Francisco José Ruiz, Odres Nuevos para el gobierno, in Vida Religiosa. Monográfico. 122 (2017), 75-76.

[22] Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 97, a. 3, solução.

[23] Seneca, De clementia, Parte II, cap. 5.

[24] Cf. LG 45.