Sexta-feira, 27 de Novembro de 2015
A vida de cada um de nós está cheia, também, de pequenas belas histórias. A dos missionários, porém, contadas por eles mesmos – como esta de “Um copo de água ao cáfir” –, parecem adquirir um outro sabor. É o caso deste pedacinho da vida do missionário comboniano, Feliz da Costa Martins [na foto], que trabalha há vários anos no Darfur, no Sudão. Um país onde, facilmente, se pode vir a ser apelidado de cáfir (infiel, incrédulo) na perspectiva muçulmana. Mesmo assim, como ensinava o catequista sudanês aos seus ainda pequenos discípulos de Jesus, “não devemos desejar mal a ninguém ou responder com a mesma moeda, nem sequer quando te chamarem cáfir, infiel, incrédulo”. E o padre Feliz explica: “Em dias conturbados como estes, tem sentido e é salutar pensar que vale a pena buscar Deus nas situações ou indivíduos onde menos imaginemos que Ele está. Porque, apesar de os homens tentarem mudar a Sua verdadeira identidade, Deus é um só e é de todos. É universal.”


Um copo de água ao cáfir

Como vem sendo costume todos os meses desde há longos anos, também hoje as crianças deixaram as suas aldeias da periferia, dirigindo-se à igreja matriz da missão de Nyala. São cerca de duzentas, o que alguém classificou como grande multidão de pequenos. Tudo leva a crer que as condições de segurança, hoje, dão esperança de ser um dia sem perigo dos ataques dos Janjauides (em língua árabe quer dizer diabos a cavalo) ou das milícias armadas.

Foram chegando desde as primeiras horas da manhã com os seus irmãos mais velhos, como companhia e também para protecção. Conhecido na paróquia de Nyala pelo nome de Yom maftuh, Dia cheio, é dedicado a actividades várias – religiosas, culturais e recreativas – onde as crianças dos cinco aos dez anos são, ao mesmo tempo, actores e espectadores. É uma das formas de sustentar a fé cristã no Sudão onde os seguidores de Jesus são apenas cinco por cento da população.

Resposta de cristão

Sempre gostei de estar presente nestes dias cheios mas, desta vez, a saúde não me ajudou. E logo tinha que ser nesta sexta-feira que o médico tanto insistiu para que saísse do meu ambiente e ritmo de trabalho da paróquia e da escola, com que diariamente me ocupo. Mas seja tudo para maior glória de Deus.

Fiquei contente e tranquilo ao ouvir as encorajadoras palavras dos meus colegas de missão, o Irmão Abele e o Padre Asfaha: «Vai e não olhes para trás, pois nós com o Sabir e os outros monitores cá nos entregamos da pequenada.»

O Youm maftuh é sempre um grande dia para os miúdos, mas mexe igualmente com todos na paróquia, de forma especial com os jovens que se encarregam de preparar e animar as várias actividades. É algo que chama a atenção e interpela até mesmo os não cristãos. Vi pessoas que passando à porta da missão paravam e quedavam-se a observar. Crianças que iam entrando no adro da igreja e, ao mesmo tempo, abriam a mão, deixando cair no cestinho o seu pequeno e simbólico contributo para o almoço, que viria a ser preparado na cozinha improvisada do alpendre.

A pequenada tinha-se acomodado sem dificuldade nas esteiras de palha debaixo do amplo coberto de canas no adro da igreja. O primeiro encontro do dia já estava em marcha. Eu estava de abalada. Ao dirigir-me para o portão, ia ouvindo distintamente a voz do monitor que falava aos miúdos. Apreciei o modo como ele os encorajava a não duvidar da presença de Deus, sobretudo nos momentos difíceis. «Quem nos separará do amor de Deus? Nada, ninguém, nunca em tempo algum. Não devemos desejar mal a ninguém ou responder com a mesma moeda; nem sequer quando te chamarem cáfir, infiel, incrédulo» – dizia-lhes, ao mesmo tempo que fixava, pessoalmente, o rosto de cada um deles.

As crianças estavam de olhos fixos no «pregador», dependuradas das suas palavras. Estariam elas atentas porque achavam o tema atraente ou porque estavam a ouvir coisas demasiado estranhas? Não precisou de levantar a voz num tom agitador ou revolucionário, mas nem por isso deixou de afirmar determinadamente: «A quem te chamar cáfir responde sem medo nem vergonha: eu não sou cáfir, eu sou cristão, eu creio em Deus e rezo para que Ele nos bendiga, a ti, e a mim.»

No campo de Dreij

Em menos de um quarto de hora, a carrinha Toyota, o transporte público usado nesta cidade, deixou-me a um quilómetro do campo de deslocados de Dreij onde cerca de 80 mil pessoas tentam sobreviver. Hoje deixei o cantil da água em casa, pois sei que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem feito um trabalho excelente, de modo que não se deva morrer à sede nos campos de deslocados. Nesta área esteve situada, durante uma dezena de anos, a Sede das forças de paz que, por sua vez, integram a missão híbrida da ONU e União Africana no Darfur (UNAMID, em sigla inglesa). Conheço bem esta zona, especialmente por estar ligada ao serviço de capelão militar, encargo solicitado à igreja por alguns grupos de militares católicos, sobretudo pelo batalhão da Nigéria. Os cerca de 15 mil elementos da UNAMID encontram-se espalhados por todo o Darfur, uma área cinco vezes maior do que Portugal. São conhecidos por capacetes azuis, um nome que lhes assenta naturalmente bem pela cor do capacete que os une a todos como instituição mundial.

Ao passar pela primeira loja que encontro peço uma garrafa de água. «Só vendemos água a copo»”, responde, timidamente, o miúdo do outro lado do balcão.

«Cáfir, infiel», ouço alguém murmurar. Embora não o visse, não estaria muito longe de mim. Um insulto, sem dúvida, mas fingi o contrário. Mantive-me calmo e levei a coisa a brincar, ao mesmo tempo que olhava para trás e à minha volta, perguntando: «Cáfir… quem?»

Sem tardar, apareceu um homem que se levantava do angarebe, a cama típica sudanesa feita de cordas de sisal. Depois da saudação normal do assalam aleicum, paz convosco, manifestei, educadamente, que tinha uma correcção a fazer. E ele ouviu, não sem surpresa, o que eu, calma e firmemente, pronunciei: «Eu não sou cáfir, eu creio em Allah, Deus, que nos quer bem a todos por igual. Rezo e peço também para que Allah o bendiga a si e a todos os desta casa.»

Apesar da situação em que, aparentemente, me tinha metido, sentia-me feliz e sereno. No entanto, não deixei de respirar fundo, preparando-me para uma reacção, grosseira e ofensiva que, porventura, viesse do outro lado.

Bom coração

O homem de trás do balcão fitou os meus olhos, enquanto a sua face barbuda adoptou um tom grave e sisudo; não vi maldade no seu coração. Da sua boca ouvi palavras que registei com atenção e respeito: «Lembre-se, khauaja, estrangeiro, que se em vez da minha pessoa tivesse topado com outro muçulmano, você já teria, certamente, levado com a porta na cara. No entanto, da minha parte, pode estar tranquilo; mas deixe que lhe diga e confirme o que é essencial e sacrossanto para nós que seguimos a religião islâmica», disse, num tom sério.

«Sou todo ouvidos», respondi, enquanto me dispunha a escutar o meu interlocutor. Palavras que pronunciou com solenidade: «Allah, Deus, enviou Maomé (a bênção de Deus esteja com ele) a esta terra. Foi através deste distinto mensageiro árabe que o mundo conheceu ou virá, um dia, a conhecer a majestosa religião islâmica. Desde então ficou claro que todas as outras religiões, as que vieram antes e as que, porventura, viessem depois, estão fora do verdadeiro culto ao Altíssimo e Todo-poderoso.»

Eis um ser humano profundamente convicto da sua religião cujas palavras contrastam com a minha fé cristã, pensei comigo mesmo. Apesar de tudo, não sinto neste meu irmão muçulmano a mancha do proselitismo ou extremismo, como acontecera noutras conversas com alguns dos seus correligionários. A minha inspiração é não só manifestar-lhe o meu respeito, como também dar graças a Deus pela paz e serenidade que experimento neste momento e neste lugar. Sem dúvida que estou diante de um homem de bom coração.

«Ah, já me estava a esquecer», disse, ao mesmo tempo que alcançava um grande copo de alumínio na extremidade do balcão: «Não temos água de garrafa; tenho um zir, uma bilha, que conserva a água fresca. Mas também tenho gelo, porque estes dias de Verão são extremamente quentes», completou, enquanto o vi desaparecer para depois de alguns segundos voltar com o copo de litro quase cheio de água em que deixou cair dois pedaços de gelo que, em seguida, me ofereceu.

«Chucran, obrigado», agradeci, enquanto recebia o copo nas minhas mãos.

E retomou a conversa: «Na khalua, a escola corânica das crianças, aprendemos coisas que, mais tarde, pela vida fora, quando encontramos alguém que não é muçulmano, usamos e repetimos demasiado facilmente e mesmo sem reflectir. Como aquela palavra que, mesmo há pouco, você ouviu da minha boca – cáfir», disse, como que a pedir desculpa. Ao que eu respondi que não se preocupasse, absolutamente, pois não tomei isso como ofensa.

Recordar é viver

«Já agora, desculpe! ainda não lhe tinha dito o meu nome; chamo-me Abdallah. A minha terra é Bulbul, a uns sessenta quilómetros de aqui. Lá não havia fome; bastava semear e trabalhar a terra durante o kharif, a estação das chuvas, e tínhamos comida para toda a família. Até que um dia, faz agora sete anos, chegaram os janjauides. Destruíram, mataram, queimaram. Dois dos meus filhos desapareceram nesse maldito e diabólico ataque.»

Abdallah fez uma breve pausa, procurando controlar a emoção, e reatou: «Imaginava-os fugitivos e, mais tarde, errantes, à procura de pão e segurança, na esperança da feliz ocasião de nos encontrarmos de novo. Depois de alguns meses, porém, tivemos que nos render à realidade de que este mundo já não é seu. E a dor é ainda maior quando nem sequer podemos dar sepultura aos nossos mortos. Nós, os sobreviventes de Bulbul, fomos avançando, aos poucos, por etapas, acampando aqui e ali, até chegarmos aos grandes campos de deslocados nos arredores da cidade de Nyala. Eu, originalmente, tinha-me estabelecido com a minha família em Salam mas, um ano depois, mudei-me para este lugar, onde sabia que a maioria das pessoas do meu clã se encontrava. Aqui é mais fácil juntarmo-nos para recordar e reviver o que aconteceu.»

«Recordar coisas tristes?», ousei interromper. «Sim», repostou. «Recordar os nossos mortos, trazer à mente as destruições, os incêndios e o despojamento total dos nossos bens. Pensa você que deveríamos esquecer? E as mulheres, raparigas e adolescentes que os janjauides violentaram para logo a seguir dispararem sobre elas, abandonando-as num lago de sangue? Esquecer? Quem esquece significa que já não tem vida em si; é como se estivesse morto. Pelo contrário, recordar faz-nos viver e lutar pela vida», rematou com arrojo e decisão.

Abdallah era como um jornal aberto donde ia tirando histórias não só da sua aldeia natal mas também de muitas outras terras darfurianas que sofreram destinos semelhantes, tal como ele tinha ouvido de testemunhas seus vizinhos aqui neste acampamento. Enquanto ele falava, eu não pude resistir à minha persistente memória que me forçou a retroceder dois anos atrás, conduzindo-me a outro campo de deslocados, em Otach. Aí havia um embondeiro, uma árvore gigantesca no meio do grande areal da aldeia onde eu ouvia histórias semelhantes às que ouço agora da boca do meu amigo Abdallah. Tabaldiat el achara, embondeiro dos dez – era este o nome por que era conhecido, por serem necessários dez homens para o abraçar. Tinha-se tornado um símbolo para quem chegava da grande catástrofe. Apesar do seu tronco e pernadas de espessura descomunal, é uma árvore de folhagem moderada e, por conseguinte, de pouca sombra; todavia, isso não impedia que o espaço à sua volta fosse considerado a etapa final para quem tinha conseguido escapar vivo dos ataques dos janjauides.

Vimo-los chegar de mãos vazias e quase nus no sentido próprio da palavra. Arrasados ao mínimo das suas forças e destroçados da viagem de vários dias agradecem a Deus o milagre de terem chegado vivos até aqui! Ao mesmo tempo, todavia, não faltam gritos de protesto e acusa contra os janjauides e quem mais lhes dera o direito e o poder de fabricar e executar aquela tragédia, o genocídio fatal do Darfur. As estruturas montadas pelas organizações humanitárias aumentavam cada vez mais; cada dia surgiam novas tendas para os deslocados que não paravam de chegar. Entre estes, vejo alguns com feridas abertas e cobertas de poeira, esperando a sua vez de serem atendidos pelo pessoal médico das Organizações não-governamentais internacionais.

Como membro da Igreja, eu não pertenço a uma organização humanitária e, por conseguinte, ninguém esperava que me encontrasse naquele lugar de emergência. Mas, daquela vez, Mary, a minha amiga inglesa, fazendo-me passar por um dos agentes da Cruz Vermelha, encorajou-me a ficar, dando uma mão aqui e acolá. Ela estava suficientemente à vontade comigo para brincar e dirigir-me palavras como as que ouvi da sua boca, sem maldade: «Tu és padre mas, no estado em que se encontram estas pessoas, não creio que necessitam dos teus sermões; toma antes isto e vai animando estes pobres desgraçados.» Sem dúvida, um pouco de humor também ajuda nestas situações, concordei, sorrindo, enquanto recebia das suas mãos uns pacotes de leite e biscoitos de nutrimento reforçado.

Instantes depois, encontrava-me de novo no meio da gente, debaixo do simbólico embondeiro. Aí demorei-me com um senhor já idoso que, depois de me dizer que se chamava Rizique, insistiu para que conhecesse a sua família que tinha chegado com ele, naquela manhã, ao acampamento. Falava-me da sua casa e aldeia em Gebel Marra que tinham sido arrasadas.

«Os biscoitos estrangeiros são muito bons», disse, num tom de agradecimento. «No entanto, preferiríamos comer o amendoim, as favas e outros legumes que semeámos nos nossos campos.» Depois, elevou o tom de voz e descarregou a sua raiva: «Mas vieram os janjauides, comeram o melhor que encontraram, pisaram o resto com os seus camelos e acabaram de destruir tudo com os seus carros de combate.»

Retorno fictício

Depois desta retrospecção instantânea que me tinha levado a Otach, encontro-me agora de novo em Dreij, à frente do balcão de Abdallah a quem ouço dizer com pena: «Alguns dos meus colegas e vizinhos desalojados que vim a conhecer nestes anos já perderam a esperança de voltar às suas aldeias de origem. Quanto a mim, ainda não estou convencido que sou deslocado e nem gosto deste rótulo aplicado à minha pessoa. É verdade que o Darfur se tornou, no mapa do mundo, uma nódoa negra onde não há segurança alguma. Mas tenho muita esperança de que a minha história não há-de acabar aqui”.»

Aqui não hesitei em interromper o meu interlocutor, na certeza de que viria ao encontro daquilo que ele mais desejava e esperava. Certamente, ele deveria estar a par da notícia que anda no ar a respeito dos deslocados do Darfur. Já é de alguns dias mas continua recente e fresca. A novidade é que os meios de comunicação social asseguram precisamente que o retorno voluntário às aldeias destruídas nos anos passados pelos janjauides já está em andamento. Segundo as autoridades governamentais, a segurança nesses lugares de conflito armado voltou ao normal, não havendo perigo algum para os que desejam regressar aos seus lugares de origem. Eu próprio segui o noticiário na televisão sudanesa onde mostraram também algumas imagens.

Contrariamente ao que eu esperava, senti que qualquer coisa não estava a bater certo. Adivinhei-o claramente pelo ar sério e triste de Abdallah, enquanto contava esta notícia, até ao ponto de quase me sentir ameaçado pelas suas palavras: «Senhor khauaja, não acredite nas notícias que ouve sem primeiro se certificar com as pessoas em causa. Neste país há mais mentirosos do que você pensa. Pergunte a quem quer que seja neste acampamento de Dreij ou na mais de uma centena de campos espalhados por todo o Darfur. Pensa, porventura, que, se isso fosse verdade eu estaria aqui a esta hora em vez de me pôr a caminho de Bulbul, a minha querida aldeia natal?»

O senhor da loja enxugou o suor com a larga manga da jalabia, a larga túnica branca. Baixou a voz e olhou em volta, como que duvidando se realmente estávamos sós. Depois, prosseguiu: «Essa falsa notícia continua a andar no ar mas ainda não encontrou pouso. Infelizmente, é falsa e ilusória. A verdade, porém, é esta: a algumas das aldeias destruídas chegaram ocupantes, mas não são retornados, nem darfurianos e nem sequer sudaneses; são estrangeiros de língua árabe, e andam bem armados. Como assim? Porquê? Para quê? Isto são factos verdadeiros mas não se dizem em voz alta na rua porque a segurança sudanesa está infiltrada em todos os cantos e o medo faz parte da nossa vida como da de todos os mortais. E morrer só se morre uma vez. Tudo isto faz com que não veja resposta possível à pergunta: o que querem os nossos governantes fazer do Al-Garb, o Darfur, e dos seus habitantes? Não sabemos onde é que isto vai dar e ainda não se vêem ares de mudança. No entanto, ainda não está tudo perdido. Continuo a ter fé em Deus que há-de ajudar a purificar as consciências de quem tem a grande responsabilidade de guiar o barco deste país», desejou.

Talvez este homem que tenho à minha frente tivesse ainda contas a desfiar no seu rosário de amargura mas preferiu, por agora, ficar por aqui. Todavia, mais do que um simples desejo, a sua determinação, é clara: retornar a Bulbul e recomeçar lá a vida com a sua família e todo o seu clã.

Um livro e o seu segredo

O seu filhote Omar, que até então tinha estado calado e quieto atrás do balcão, parecia um tanto indiferente aos pormenores do possível retorno a Bulbul, pois era ainda bebé quando a família escapou de lá. Despertando da sua timidez, lançou-me um olhar ambíguo que eu não decifrei no momento, e desapareceu por uns instantes para, de aí a pouco, entrar novamente em cena. Trazia na mão um livro marcado pela sujidade e mau cuidado. Reconheci imediatamente que se tratava do Novo Testamento da Bíblia Sagrada. Perguntou-me se o conhecia. Observando-o de perto, notei que já não estava inteiro: tinha o aspecto de ter sido comido, em parte, por algum animal. «Claro que conheço», respondi; «É irmão de um que eu leio todos os dias», confirmei com um sorriso. O pai, por sua vez, olhava o livro com um certo ar de reverência ou quase temor e, não sem dificuldade, ousou pegar nele em suas próprias mãos.

Entretanto, curioso, decidi fazer a vontade ao pequeno Omar que me tinha feito um sinal de olhos. Levou-me até às traseiras da casa onde estava um pequeno rebanho de cabras dentro de um curral improvisado a céu aberto feito de canas de bambu toscamente entrelaçadas. «Foi aquela feia e má», disse o miúdo, apontando para uma das cabras que, de olhos arregalados, parecia querer desafiar-nos.

É muito possível, pensei, enquanto na memória se me representava uma cena de que eu tinha sido testemunha na minha chegada, pela primeira vez, a este país, em 1987. Lembro-me como se hoje fosse: na berma da estrada que sai do aeroporto da capital, Cartum, um bando de cabras tomava conta de uma lixeira onde os papéis que tinham na boca pareciam ser um delicioso petisco. Afinal, as cabras de hoje continuam com os mesmos hábitos de ontem – diverti-me comigo mesmo, sorrindo, enquanto voltava para o balcão, onde Abdallah desfolhava sem pressa, as páginas incompletas e sujas do livro que, entretanto, já não parecia ser para ele o misterioso objecto de antes.

Escutei com especial interesse o que, a seguir, me foi revelado a respeito do mencionado livro que a cabra má e feia tinha deixado naquela deplorável condição: «Pertence ao meu filho mais velho, Mauia, que casou há seis meses e foi viver para a outra ponta do bairro. Sei que o meu rapaz era muito amigo de quem lho oferecera: um tal khauaja a quem ele chamava de abuna, padre, e tinha sido seu professor aqui perto na escola Comboni, no bairro de Taiba. Isto já vai em mais de vinte e cinco anos, quando a escola ainda estava em construção. Tenho como interessante que o meu filho me dizia que esse tal abuna lhe mostrara um segredo contido neste livro, uma palavra-chave que dava o poder aos crentes em Jesus Cristo de conquistar um reino que lhes permitiria habitar para sempre com Allah. Sim, uma espécie de janna, paraíso, de que também fala o Alcorão, o nosso livro sagrado.»

Enquanto o homem atrás do balcão continuava entretido com as páginas sagradas, eu dirigi para ele o meu olhar meditativo. Os livros têm a sua importância, e mesmo esse que tens na mão, apesar de tão machucado e mau aspecto, nem por isso perde a sua dignidade. Deus ultrapassa tudo isso e vai mais além das letras e páginas que, porventura, lhe faltam. Jesus Cristo tem a palavra-chave de que tu próprio me falavas há poucos minutos: janna, o paraíso, o reino de Deus, que Ele veio anunciar. O segredo foi escolhido por Deus e a palavra-chave é a morte e ressurreição do próprio Jesus. Estou contente de que à minha mente tenham aflorado estes pensamentos que, aliás, não é novidade para mim, pois faz parte da doutrina cristã e teologia que eu sigo. Mas, longe de mim querer revelar imediata e directamente ao meu interlocutor o conteúdo desta minha meditação: este seguidor de Maomé não merece tal ofensa. A conversão é obra de Deus. Espero em Jesus que nos inspirará o modo e o tempo próprios de O fazermos revelar àqueles que Ele ama.

Amigos, vizinhos, fregueses

Entretanto, bebi mais um pouco de água e pousei o copo de alumínio no balcão. Na loja entrou um jovem que, depois do habitual assalam aleikum, disse: «Eh, Abdallah, hoje estás com sorte, tens khauaja na tua loja.»

«Quem tem sorte sou eu que acabo de matar a sede», gracejei. «Itfaddal, faça favor», disse eu ao recém-chegado, ao mesmo tempo que lhe oferecia o copo ainda meio cheio. «É muito boa e está fresquinha», rematei.

«Sim, ele tem sempre gelo que compra em grandes barras ao miúdo do carro de mão que passa aqui todos os dias», disse o jovem antes de levar o copo à boca. «E fui eu mesmo que lhe ofereci a roda do eixo de uma velha bicicleta para partir e despedaçar o gelo», continuou, mostrando-me com os olhos a tosca engenhoca de metal com que Abdallah tinha apenas acabado de partir um pedaço de gelo para um próximo cliente.

Tendo acabado de beber, o jovem olhou para mim agradecido, pronunciando com brio: «Thank you, khauaja.» Despediu-se um tanto apressadamente, dizendo ao seu amigo atrás do balcão que se encontrariam de aí a pouco, na mesquita. Ao que Abdallah respondeu: «In chá Allah, se Deus quiser.»

Quase sem dar conta tinha outra pessoa ao meu lado: uma senhora que vestia túnica e hijab, o véu, de meio corpo, a cair-lhe sobre os ombros, deixando entrever apenas os olhos. Não se lhe via nada de rosto, mas o senhor da loja não duvidou da sua identidade e, sem hesitar, tratou-a pelo seu nome: «Como estás, Salma? Ahlan ua sahlan, sejas bem-vinda.»

A saudação e os cumprimentos estenderam-se longamente, como é costume em todo o Sudão; a conversa rolava à volta das duas famílias e dos vizinhos; até que por fim, a senhora disse que o azeite lhe veio a faltar em casa. Imediatamente o dono da loja levantou o jarrican do chão, vertendo o azeite na almotolia de litro que se encontrava aí para o efeito. A seguir, pegou num saquito novo de plástico para dentro do qual derramou o viscoso líquido que a senhora agradeceu, despedindo-se com um maa salama, adeus.

O senhor Abdallha deslocou a caderneta de encima de um velho jornal e puxou do lápis do bolso da jalabia. Mostrou o lápis ao pequeno Omar, o qual, interpretando espontaneamente o gesto do pai, apareceu subitamente com uma muss, uma lâmina, na mão. Sim, uma lâmina daquelas de barbear. De facto, dizer muss com um lápis na mão e dizer muss e a barba por desfazer tem a ver com o mesmo utensílio. Instantes depois, o lápis, já com a ponta afiada, passou de novo para a mão do dono da loja que assentou na caderneta a conta da senhora Salma, juntando-a à lista de outros clientes que vão comprando fiado na sua loja.

Em direcção à mesquita

O altifalante da mesquita próxima de nós trovejou. A proclamação do adan, o chamamento para a oração, majestosamente cantado pelo muazim atravessa os céus e penetra em todo o espaço em redor: «Allahu acbar, Deus e’ o maior.»

É sexta-feira. Desvio o olhar na direcção da rua onde já se avistam alguns homens de jalabia branca que caminham na direcção do templo. Dos aposentos internos da loja aparece uma mulher com o ibrique, o regador de plástico pequeno, na mão, que pousa no fundo da prateleira principal, começando, de seguida, a desocupar o balcão. Vê-se nela uma senhora muito desenvolta e cheia de energia. Vem acompanhada de um menino pouco mais novo que o Omar a quem ajuda a vestir as cirual, as calças brancas que se usam por debaixo da jalabia. Demora-se a ensinar-lhe a fazer a laçada da tica, o cordão, em volta da cintura. O pequeno estabelecimento está a fechar. É dia santo semanal. Folgam as instituições e repartições governativas, se bem que o mercado em geral conserva-se aberto, livremente, segundo as conveniências e próprios interesses dos respectivos donos. Digno de menção, porém, é que ao começar a oração comunitária do dia santo muçulmano, antes das duas horas da tarde, não se vêem portas de estabelecimento comercial abertas.

Observo Abdallah que, tendo arregaçado as típicas longas mangas da jalabia até ao ombro, está agora a acabar de fazer a sua ablução, isto é, o ritual da lavagem antes da oração. Uma mão segura o ibrique de cujo pequeno cano vai caindo a água na concha dos dedos curvados da outra mão que eleva cuidadosamente até um pouco mais acima do cotovelo. Sem interromper o ritual da ablução, o fiel muçulmano vai-me dizendo: «Amigo khauaja, não estou a mandá-lo embora mas o muazim já chamou para a oração.»

Eu nem o deixei terminar de falar, atalhando imediatamente: «la samaha Allah, Deus me livre de tal! Não seja por minha causa que vá chegar tarde ao apontamento da oração na mesquita.» E, com as moedas na mão fui dizendo, apressadamente: «Mas não queria ir embora sem liquidar a minha conta.» Vi-o reagir delicada mas seriamente. «Não me queira ofender com essas suas palavras», disse, enquanto sacudia as últimas gotas de água das mãos. «E, quando passar de novo por aqui, espero poder oferecer-lhe não só água para beber mas também o almoço e mais tempo para estarmos juntos, in chá Allah, se Deus quiser», concluiu.

«Chucran, obrigado», respondi-lhe encarecidamente. Ele veio à frente do balcão para um forte e sentido aperto de mão. «Ah, antes de partir, aceite as minhas desculpas por tratá-lo por khauaja, estrangeiro, sem lhe ter perguntado sequer o seu próprio nome». «Não há mal nisso, absolutamente; fica para a aproxima vez», respondi.

Atravessei a soleira e ouvi a porta ranger; poucos segundos depois, distingui, claramente, o clique ao fechar do loquete. Dei os primeiros passos na areia mole da rua, voltei-me ainda para trás e disse: «Maa assalama, adeus.»

Se, porventura, Abdallah não tenha ouvido esta minha saudação de despedida, muitos outros, porém, a ouviram admirando-se, ao mesmo tempo, de ver um estrangeiro branco naquele lugar. Era uma multidão de jalabias que ondulavam no grande areeiro que se perdia lá ao longe, até entrar no grande bloco espesso e denso das tendas do acampamento onde homens, mulheres e crianças foram destinados mas não pelo acaso ou má sorte. Pelo contrário, o que os trouxe aqui foi o interesse dos homens que se transformou em ódio, violência e guerra.

Ao atravessar o mar das jalabias reciprocava a bela saudação «Assalamu aleicum.» Caminhavam, de passo ligeiro, em direcção à mesquita donde saiu o convite para a oração. No templo sagrado, estes homens disporão os seus ouvidos e corações em direcção à palavra-chave de que falava o livro meio comido pela cabra feia e má. O convite é universal. O janna do Alcorão, o paraíso da Biblia, o reino de Allah, de Deus, é para todo o ser humano.
Feliz da Costa Martins
Nyala – Darfur (Sudão)


O P. Feliz da Costa Martins, em Lisboa, falando sobre a situação no Sudão e agradecendo uma oferta que recebeu
para a manutenção da escola da sua missão de Nyala, no Darfur, em 2011.