Sexta-feira, 6 de Junho de 2014
O ataque de 28 de Maio passado à igreja paroquial de “Notre Dame de Fátima”, na República Centro-Africana, causou 19 mortos e, pelo menos, o sequestro de 27 civis. No momento do ataque, a igreja estava a hospedar 9.000 deslocados por causa da guerra, incluindo as 2.050 pessoas que se tinham refugiado ali há apenas uma semana, devido ao aumento de insegurança nos bairros vizinhos, enquanto os outros estão ali desde Dezembro de 2013. Os quatro combonianos ali presentes pedem as nossas orações. Na foto: o cálice da missa atingido por uma bala. Na foto: o cálice da missa atingido por uma bala, na sacristia.
A 28 de maio, um grupo atacou a paróquia de Nª Srª de Fátima, em Bangui, a capital da República Centro-Africana onde estão refugiadas mais de 6000 pessoas desde que as milícias Seleka muçulmanas tentaram tomar o poder pela força em Agosto de 2012. Um missionário comboniano narra quase duas horas de puro terror.
Habituado ao ritmo da vida provocado pela crise, quarta-feira, 28 de maio, parecia mais um dia normal de crise com disparos aqui e ali. De manhã, ouviu-se tiros esporádicos em PK5 (um bairro predominantemente muçulmano) e todos pensámos que era a música diária a que nos habituámos. Mas não era: foi o pior dia na história da paróquia de Nossa Senhora de Fátima, em Bangui, a capital da República Centro-Africana.
Eu estava a fazer a hora de sesta diária quando tudo começou. O tiroteio intensificou-se mas eu estava convencido que ia terminar mais cedo ou mais tarde. Fui à casa de banho e voltei ao quarto para um duche. Mal acabei as pessoas começaram a correr à procura de abrigo. Vesti-me rapidamente para não ser surpreendido nu no meu quarto (pelo menos para morrer vestido).
Houve um intervalo e pensei que o tiroteio estava a esmorecer. Fui para a minha sala de estar, separada do quarto por um cortinado, e comecei a preparar os comentários para a missa da Ascensão. As armas voltaram a disparar, desta vez mais perto da paróquia. O padre Samuel Langena, comboniano da Etiópia, telefonou do seu quarto, que está a oito metros do meu. Disse a brincar que hoje estavam a jogar a «final» e o vencedor levava a taça. Momentos depois, as coisas ficaram demasiado sérias. As explosões das granadas faziam tremer a terra. Eu sentia as vibrações nos meus pés. Os escuteiros e alguns dos «anti-balakas» (milícias cristãos) obrigaram as pessoas a sair das varandas e procurar refúgio noutro lugar.
Alguns minutos depois os «anti-balakas» ficaram sem munições e tiveram que fugir deixando os portões da paróquia escancarados e sem segurança.
Os atacantes entraram sem resistência e começaram a atirar indiscriminadamente sobre as pessoas. Muitos dos jovens enérgicos conseguiram galgar os muros, embora em algumas esquinas fossem repelidos pelos atacantes que estavam bem posicionados. Em frente da morte, tornamo-nos mais criativos. As pessoas encontraram lugares de refúgio até entre as próprias bagagens. Muitos dos quartos na casa dos padres estavam cheios de pessoas: até o estreito corredor murado para as nossas casas de banho acomodou mais de 70 pessoas. As sete salas para a catequese estavam completamente cheias. Tivemos muita sorte que os atacantes não suspeitaram que as pessoas se esconderam nas salas. Estavam mais interessados em atirar granadas para a igreja, que surpreendentemente estava vazia.
Estava no meu quarto sem saber o que fazer. Tentei contactar algumas pessoas para nos virem salvar. Ouvi a voz do padre Jonas Béka a tentar chamar os «sangaris» (tropas francesas) e a informar o seu tio General Yangongo Xavier Sylvestre, que foi ministro no governo anterior, sobre o ataque. Quando as coisas se tornaram impossíveis telefonei ao superior provincial, o padre Giorgio, para lhe dizer o que estávamos a passar. Por momentos senti-me perdido e incapaz de usar o telemóvel. Ouvi alguém atrás da igreja a pedir a Deus que enviasse o seu poder para nos proteger do poder de Satanás e também a pedir à Senhora de Fátima para não nos abandonar. Subitamente, encontrei-me envolvido numa nuvem de fumo. Corri para me esconder no chuveiro. Houve forte tiroteio no nosso terreiro por uns 25 minutos. Ainda não sei como saí deixando a porta do quarto aberta. Em todo o terreno da paróquia havia pessoas a gritar e a chorar. Havia sete cadáveres à frente da igreja e muitas pessoas carregavam os feridos tentando encontrar maneira de os levar para o hospital.
O padre Samuel Langena, que também estava a fazer a sua sesta, pensou que os tiros iriam durar pouco e estava a usar o telemóvel para gravar o tiroteio como sempre o faz. Mas como os tiros cresceram em intensidade ficou preocupado e telefonou-me para perguntar o que se passava. E perguntou se era a final da taça. Ansioso, ficou sem saber o que fazer. Estava indeciso se ficar no quarto ou abrir a porta e escapar. Ele disse que me telefonou segunda vez para eu rezar pelas pessoas mas eu não me lembro.
Quando as coisas pioraram, ele mudou-se do quarto para a sala enquanto rezava a Deus para não nos abandonar. A certo ponto, os atacantes bateram à sua porta e disseram-lhe em inglês para abrir. Teve a impressão que os outros padres já tinham sido mortos e que ele seria o único sobrevivente. O medo cresceu e sentiu a sua morte eminente.
Por milagre, pegou no seu terço de três metros e começou a rezar. Havia um grande silêncio: só se ouvia tiros e explosões. Não sabe como rastejou no chão. Sentia-se paralisado. Não se escondeu no chuveiro como eu, porque pensou que era uma maneira indigna de morrer. Preferiu ficar no chão da sua sala de estar com o rosário.
Quando as pessoas voltaram a falar, abriu a porta e saiu descalço com o seu comprido terço ao pescoço a ver ser os confrades ainda estavam vivos. Quando se deu conta de que estávamos todos bem ficou aliviado do choque. Recebeu uma chamada do superior provincial a tentar encorajá-lo. Esta foi a experiência mais terrível que teve até hoje. Ficou marcado pelo modo como viu as pessoas a saírem da paróquia a gritar e chorar. O barulho normal de 6000 deslocados tornou-se no silêncio do cemitério. Depois do incidente, ele passou a noite em claro e ainda é atormentado por pesadelos ocasionais.
Caminhando no terreiro no dia seguinte, foi terrível ver os lugares afectados pelos tiros e granadas. Quase todos os vitrais da igreja foram destruídos. Duas granadas foram atiradas contra a porta principal mas não a danificaram. Os atacantes pensaram que as pessoas se esconderam na igreja. Teria sido uma carnificina se tivéssemos deixado as pessoas esconderem-se na igreja. Outras destruições: motorizadas queimadas e paredes e tetos destruídos pelas balas.
A parte pior foi a destruição humana. As pessoas falam de mais de 50 feridos e 15 mortos, incluindo um ex-padre diocesano que estava de passagem. Testemunhas oculares disseram que os atacantes levaram alguns jovens em dois todo-o-terreno brancos. Até agora não se sabe nada sobre eles.
Apesar da gravidade do ataque, as pessoas estavam felizes por nos verem vivos.
Este incidente põe algumas questões sérias: como é possível que depois de seis meses da presença de MISCA (missão internacional) e Sangaris (missão francesa) em Bangui ainda haja tanta insegurança? Também é quase certo que os atacantes passaram pelo mercado principal chamado KM5 e o mercado não é longe da base das tropas internacionais. Como é possível que não os viram? A paróquia fica entre dois postos de controlo das tropas do Burundi e ambos estão a menos de um quilómetro da igreja. Porque não vieram em nossa defesa a tempo tendo em consideração que os atacantes permaneceram quase duas horas à volta da paróquia? Como é possível que Bangui continue tão inseguro depois de seis meses de presença de forças estrangeiras? Não sabemos para onde caminhamos. Estamos em crise a todos os níveis.
Continuamos a rezar por este país.
Padre Moses Otii,
missionário comboniano ugandês
Fátima – Bangui, 31 de Maio de 2014