Roma: segunda-feira, 10 de Junho de 2013
Os 23 missionários do 45° Curso Comboniano de Renovamento acabam de regressar às suas circunscrições para dar continuidade às actividades apostólicas que haviam interrompido para dedicar um tempo – de Janeiro a Maio de 2013 – à formação pessoal, à reflexão, ao silêncio e à convivência fraterna. O P. Saverio Paolillo (foto), um dos participantes, agora de volta ao Brasil, conta-nos “as maravilhas que Deus realizou” em sua vida e no grupo, durante estes cinco meses.

P. Saverio Paolillo
entre duas crianças
no Cairo (Egipto).

Caríssimos,

depois de um período em casa para cuidar da minha mãe e após ter encontrado com meus irmãos uma solução para garantir-lhe uma boa assistência, em janeiro fui para Roma para a primeira etapa de um curso de renovação.

Foram meses fecundos, um verdadeiro momento de Graça, durante os quais tive a oportunidade de fazer uma forte experiência de oração, de escuta da Palavra de Deus, de revisão da minha vida e de avaliação de minhas opções fundamentais. Tem sido como sentar na beira do poço de Jacó e, a exemplo da experiência da Samaritana, ter um encontro pessoal com Jesus para uma avaliação da minha vida consagrada e dos 25 anos  de militância na Pastoral do Menor, para escavar no profundo da minha alma, iluminar tudo aquilo que estava escondido, aprender a acolher e aceitar as minhas limitações, agradecer pelas maravilhas que o Senhor realizou através de mim e apesar de mim, e experimentar em Jesus a condição de filho amado.

De Roma ao Egipto

Estando em Roma tive também a chance de presenciar a grandes acontecimentos da vida da Igreja, como a escolha de Papa Francisco a bispo de Roma trazendo um vento novo de esperança para a Igreja e para o mundo. O lava-pés realizado pelo Papa na última Quinta-feira Santa numa unidade para adolescentes infratores de Roma representou para mim um gesto de solidariedade com os últimos e uma confirmação eclesial do trabalho da Pastoral do Menor.

Agora estou vivendo a segunda etapa do curso que é itinerante. É uma romaria rumo às nascentes da plenitude da Vida. Primeiro passamos pelos lugares onde nasceu o nosso fundador, São Daniel Comboni, e foi fundada a  congregação dos Missionários Combonianos. Esta etapa serviu a atingir às fontes de nosso carisma e a fortalecer o sentido de pertença à nossa congregação que tem como missão o anúncio do Evangelho do Reino de Deus  aos mais pobres e abandonados.

Depois fomos para o Egito onde entramos em contato com os primeiros passos que São Daniel Comboni fez para dar início ao seu trabalho missionário na África Central a partir de 1857, quando ninguém acreditava nos africanos, vendidos como escravos e exportados em navios negreiros para o “Novo Mundo” onde viravam mão de obra nos engenhos escrevendo, com seu suor e sangue, uma das páginas mais sangrentas do povo negro e uma das mais vergonhosas da história da desumanidade.

O Egito, no projeto missionário de São Daniel Comboni, se tornou uma base de apoio para a missão na África Central. A dificuldade dos missionários europeus se adaptarem ao clima do Sudão fez com que Comboni utilizasse a Cidade do Cairo como lugar de adaptação antes de enfrentar longas viagens pelo Nilo e pelo deserto para chegar ao coração da África. Ao mesmo tempo, querendo que desde o início os africanos fossem protagonistas da evangelização e promoção humana de seu povo, acolheu no Egito jovens africanos para que pudessem estudar e se tornarem colaboradores dessa grande obra.

Visitamos os lugares onde esse projeto teve início e encontramos as comunidades da família comboniana (padres, irmãos e freiras) que hoje anima as pequenas comunidades cristãs e presta um serviço silencioso, mas eficaz através das escolas onde estudam juntos crianças e adolescentes cristãos e muçulmanos.

Durante a viagem, encontramos várias lideranças cristãs, seja da Igreja Católica seja da Igreja Copto-Ortodoxa, que nos contaram um pouco da vivência das pequenas comunidades cristãs numa terra quase prevalentemente islâmica e, através de visitas a algumas mesquitas e do canto dos muezins que, do alto dos minaretes convidavam à oração cinco vezes por dia, podemos ter um rápido e superficial mergulho na espiritualidade islâmica. 

O encontro com as pessoas, suas tradições e seus costumes, aconteceu pelas ruas, sobretudo nos mercados. Coloridos e cheios de animação eles acontecem num labirinto de vielas onde se encontra todo tipo de mercadoria, sobretudo, produtos belíssimos do artesanato local. Apesar das dificuldades de comunicação por não conhecer o árabe, percebi que o povo do Egito é muito acolhedor.

Na cidade do Cairo visitamos, entre todas, duas experiências interessantes: em primeiro lugar estivemos nas montanhas de Mokattam, com uma comunidade de Zabaleen (em árabe: catadores de materiais recicláveis) que é responsável pela coleta e reciclagem de cerca de 90% do lixo da cidade. A região onde vivem, também chamada de Zabbaleen, é uma cidade que abriga cerca de 50 mil pessoas, construída entre os rejeitos dos mais ricos, um cenário que faz as nossas favelas parecerem condomínios de luxo. A maioria vive com menos de 1 dólar por dia. Homens, mulheres, crianças e animais dividem as tarefas de separar lixo orgânico de tecido, papel e metal. Há associações que articulam os trabalhos. Alguns moradores criam produtos como bolsas, brinquedos, tecidos e tapetes, revendidos em lojas no Egito e exterior.

O cheiro e a presença do lixo são percebidos por todos os lugares. O trabalho é difícil, cansativo e o risco de contaminação é grande. O bairro é o maior “gueto” de cristãos coptos. Com tatuagens de cruz na mão ou no punho, confirmam com orgulho a opção religiosa. Ma a maior surpresa se dá no topo da montanha onde surge um grande complexo religioso da comunidade cristã Copta-ortodoxa, constituído de sete igrejas e catedrais escavadas na rocha. Na principal gruta, utilizada em passado como lixão, estavam acumuladas milhares de toneladas de lixo. Os moradores tiveram que fazer um grande trabalho para transformar o lixão num lugar de oração e de paz. É algo de impressionante. É um sinal de esperança e de fé dos pequenos que, na dureza da vida, quiseram sentir materialmente perto de si a presença de Deus. É mais uma página do mistério da encarnação: o Deus que se faz pequenos e planta sua tenda no meio dos pobres. Em Mokattan, na esperança e na coragem dessa comunidade de cristãos coptos, encontrei Deus no topo de uma “montanha de lixo”. Essa história tem tudo a ver com a luta das comunidades de São Pedro em Vitória que, aos poucos, transformaram o lixão, num lugar mais digno de se viver, apesar dos inúmeros desafios que ainda precisa vencer.

A outra visita foi à comunidade de Sakakini com prófugos do Sudão que, sobretudo nos anos da guerra entre o norte e sul do Sudão, se refugiavam em Egito à procura de melhores condições de vida. Agora, com a proclamação da independência do Sudão do Sul, alguns estão voltando para sua terra, mas, decepcionados, acabam retornando ao Egito por falta de trabalho. A maioria recebe o reconhecimento da condição de refugiado e, portanto, ganha um auxílio econômico da ONU que, porém, é insuficiente para conduzir uma vida digna. Um grupo de combonianos mantem uma escola para as crianças e os adolescentes sudaneses, desde a creche até o segundo grau.

Uma das coisas que mais chocou todo mundo foi a “Cidade dos Mortos”. Percorrendo uma das principais rodovias da Cidade do Cairo, se passa ao lado de um grande cemitério onde, entre os túmulos, vivem milhares de pessoas que não têm onde morar. É uma verdadeira cidade com até um pequeno comércio. O interessante foi reparar que do meio daquelas casinhas misturadas com os túmulos se elevavam pipas. Lembrei-me de nossas crianças brasileiras. A pipa profetizava que naquele meio havia crianças de cabeça erguida, com o olhar para o alto e nos olhos o brilho do sol. Parece coisa insignificante, mas para mim é muito significativo. Onde só se via miséria, apareciam pipas coloridas, cada uma do seu lado, só esperando se unirem com aquelas das crianças brasileiras e de todos os lugares do mundo para construir um grande arco-íris. Essa minha visão não é paranoia, mas uma utopia possível. É só depor o arco da guerra. É todo mundo se desarmar para que o arco da paz, alicerçado na justiça e na solidariedade, seja estendido entre o Céu e a Terra, entre Deus e a humanidade e em toda a comunidade humana.

Como já disse em outras oportunidades, podem aparecer outros desafios, mas como a pipa só consegue levantar o voo quando é colocada contra o vento, assim o pior dos nossos problemas serve a nos elevar a um degrau mais alto se todos estivermos unidos na vontade de fazer o melhor e de fazê-lo bem feito. E esperança é um sonho de olhos abertos e de mangas arregaçadas.

No Egito aproveitamos também para reviver a experiência do Êxodo, fazendo memória do Deus que sente compaixão do povo explorado e chama Moisés para conduzi-lo para a libertação. A suntuosidade das pirâmides e de outras construções do antigo Egito, se por um lado mostraram a grandeza das antigas civilizações que habitaram nessas terras, do outro lado nos levaram a imaginar o sofrimento e a dureza do trabalho dos escravos explorados nas construções. Deu para sentir o drama do povo de Israel e entender seu clamor que mexeu com as entranhas de Deus que, comovido pela dor de seu povo, convocou Moisés para começar o caminho da libertação. É pena que não tenhamos conseguido chegar até o Sinai que atualmente virou uma região muito perigosa por causa de gangues criminosas que agem como “coiotes” e praticam “tráfico de seres humanos”. Estes, em troca de grandes quantias de dinheiro, prometem a entrada clandestina em Israel de Etiópicos, Eritreus e Sudaneses em fuga da miséria em busca de melhores condições de vida. Na realidade essas gangues ou os abandonam no deserto, assim como acontece na divisa entre o México e os EUA, ou sequestram seus clientes exigindo dos parentes enormes quantias de dinheiro. Merece destaque a luta de Irmã Azezet, missionária comboniana, que há anos vem lutando contra o trafico humano. Ultimamente, seu compromisso em defesa dos direitos humanos foi reconhecido também pela ONU.

No Egito vimos também que a primavera Árabe, movimento popular que atingiu muitos países árabes de 2010 a 2012 para derrubar as ditaduras e pedir maior democracia, não teve os resultados esperados. Grupos muçulmanos radicais tomaram o poder impondo a Lei Islâmica.

Israel e a Terra Santa

Enfim chegamos a Israel para visitar a Terra Santa. Logo durante o percurso de Tel Aviv até Jerusalém percebemos as tensões que existem neste país. Um longo muro foi construído para separar os territórios ocupados por Israel daqueles ocupados pelos palestinos. A principal justificativa da construção do muro de Israel tem sido o discurso da segurança, de acordo com o qual Israel isolaria os palestinos, evitando possíveis ataques a Jerusalém. O Muro de Israel possui enormes dimensões, com uma extensão de 721 km, 8 metros de altura, trincheiras com 2 metros de profundidade, arames farpados e torres de vigilância a cada 300 metros – tudo isso para ser intransponível.

Foram construídos dois muros: um muro que cerca as fronteiras da cidade de Jerusalém, bloqueando a passagem livre dos palestinos para a parte ocidental de Jerusalém; e o outro muro foi construído externamente, onde Israel visou cercar e controlar suas colônias que surgem como manchas em todo o território do país.

No ano de 2004, o Tribunal Internacional de Justiça declarou a ilegalidade do muro e acusou a obra de separar e isolar aproximadamente 450 mil pessoas. Além disso, segundo o Tribunal, algumas partes do muro invadem territórios palestinos. Entretanto, autoridades políticas de Israel, sempre que são questionadas a respeito da construção do muro, alegam que o muro trouxe diminuição dos conflitos e afirmam que não pensam em retirar o muro de forma alguma. No lado palestino, o muro passou a ser alvo de diversos artistas e várias partes do muro foram ilustradas com desenhos.

Na casa onde estamos hospedados, na região oriental de Jerusalém, tradicionalmente ocupada por Palestinos, o muro dividiu o quintal e separou famílias. Parte dos palestinos ficaram de um lado e parte do outro. Para ir de um lado ao outro do muro precisa fazer vários quilômetros e passar por um “checkpoint”, uma roleta que constitui um ponto de controle. De madrugada centenas de palestinos fazem uma longa fila e aguardam a abertura da roleta para ir trabalhar em território israelita se tiverem a autorização. Israel, apesar das críticas internacionais, continua construindo casas na parte oriental de Jerusalém e ocupando várias regiões do país com a construção de cidades (assentamentos), habitadas por judeus que voltam de outros países. Dessa forma é impossível chegar à constituição de dois estados contínuos, pois os territórios que deveriam fazer parte da Palestina estão sendo ocupados por Israel. A tensão é muito alta. Em Jerusalém é muito grande a diferença de padrão de vida entre a parte palestina e a parte de Israel. Tal diferença é perceptível em todo o país. É impressionante, porém, ver como Israel conseguiu transformar regiões desérticas em belíssimos bosques e plantações com o uso racional da água, sobretudo na região da Galiléia. Acho que a experiência de Israel poderia servir de exemplo para o sertão brasileiro.

Ao visitar alguns “lugares santos” percebe-se certa tensão também do ponto de vista religioso. Fiquei muito mal impressionado na Basílica do Santo Sepulcro dividida entre várias confissões cristãs que chegam a brigar entre elas. Cada um tem o seu espaço e seu tempo para sua liturgia, mas, em certos momentos, parece uma torre de Babel. É difícil construir a paz quando nem quem professa o nome de Deus consegue viver em espírito de reconciliação.

Apesar desses desafios, a experiência está sendo muito forte, pois estamos tendo a possibilidade de ver com nossos olhos os lugares onde se desenrolou a história da salvação. É bom pisar nos mesmos lugares onde passou o Mestre para anunciar o Reino de Deus. É forte a tentação de olhar com a visão superficial do turista. Na realidade precisa manter a abordagem do peregrino que observa tudo, escuta a Palavra, guarda cada detalhe em seu coração para que, ao voltar para casa, possa, à luz daquilo que viveu e escutou, viver em seu contexto e em seu dia-a-dia a experiência da salvação. O biblista Lagrange, numa célebre frase, dizia que a Bíblia é uma história e uma geografia da salvação. É a memória de um povo que, a certo ponto de sua história, sobretudo na experiência da exploração, encontrou um Deus não mais distante, mas próximo, viandante, peregrino, que solidarizou com seus sofrimentos e, em Jesus Cristo, assumiu até a condição humana para mostrar seu amor paterno e materno e realizar seu projeto de salvação. Ler e tocar com mãos essa experiência, pisar na terra onde tudo isso se desenrolou, ver os lugares e respirar a atmosfera onde tudo isso aconteceu, serve somente se ajuda cada peregrino a aprender a refazer essa mesma experiência no lugar onde vive com seu povo no dia-a-dia.

Nossa peregrinação partiu de Jerusalém, pois aqui aconteceu a Páscoa, o evento fundamental de nossa fé. O mistério de Cristo se entende só à luz de sua Morte e Ressurreição. Como diz o Apóstolo Paulo e lhe faz eco Santo Agostinho, sem o mistério da Ressurreição a nossa fé seria vã.  Foi este o entendimento das primeiras comunidades cristãs que fizeram da Páscoa o seu primeiro anúncio e releram a vida de Jesus à luz desse Mistério. Partindo de Betfagé, percorremos todos os lugares onde se passaram os últimos acontecimentos da vida de Jesus. Visitamos o pátio do templo, onde atualmente surgem duas grandes mesquitas. Fomos até o muro das Lamentações, lugar sagrado para o Judaísmo, pois é o único vestígio do Templo de Jerusalém.  Percorremos a Via Dolorosa. Entramos na “sala de cima” onde aconteceu a Última Ceia. Celebramos a Eucaristia no Santo Sepulcro ou na Basílica da Ressurreição, como dizem os cristãos ortodoxos. Fomos ao lugar onde Jesus subiu ai céu e conhecemos o Cenáculo onde os apóstolos e Maria receberam o dom do Espírito Santo e começaram a história das comunidades cristãs.

A missão de Jesus é um caminhar rumo a Jerusalém. Jerusalém era o centro do poder. Do poder religioso: ali estavam o templo, a Arca da Aliança e os Sumos Sacerdotes. Do poder político: nela residiam o Rei, o Governador e as outras autoridades. Do poder econômico: nela que se concentravam os proprietários de terras, os comerciantes e os funcionários do sistema. Jesus se dirige até lá para colocar em discussão os mecanismos do poder: se existe a Galiléia e porque existe Jerusalém. Se há pobres e porque existem exploradores que massacram o povo. Se existem situações de exclusão é porque a política não é mais arte do serviço ao bem comum; a cultura dominante é aquela que transforma a pessoa humana num grande consumidor; a ética é maquiavélica: o fim justifica os meios; a religião dominante é aquela que professa o deus capital, apregoa a resignação e difunde a espiritualidade da submissão cega. Jerusalém é o momento do confronto entre opções decisivas. Não dá para ficar em cima do muro. Precisa se posicionar.  Jesus enfrenta tudo isso para dizer que seu Reino não é desse mundo. O seu projeto tem como ponto de partida um Deus que é trinitário, isso é que é comunhão, amor, doação recíproca e tem como programa três P: a Palavra que liberta, o Pão que gera comunhão e os Pequenos que vivem em comunidade. É muito diferente do “projeto do capeta” que tem como referência a “trindade da maldade”: a economia a serviço do capital financeiro, a política a serviço do poder e o espírito predatório que passa por cima da vida para enaltecer o ego.

“Quem cala consente!”. Silêncio é sinônimo de omissão e de cumplicidade. O conflito faz parte da missão e deve ser encarado. Nada de fuga (Emaús). O ressuscitado é o crucificado. Mas Jesus, ao perdoar seus torturadores, nos ensina que o conflito deve ser vivido evangelicamente: não dá espaço a posturas rancorosas, agressivas e violentas, mas permeia-se de amor. Os opositores e até os inimigos devem ser evangelicamente amados. Na base do conflito não pode haver o desejo de destruição do outro, mas a preocupação com o outro, o desejo de alertá-lo a respeito da sua prática que o conduz no caminho de destruição de si mesmo e da humanidade.

O cristão não é do ”partido do contra” ou da “intriga da oposição”, mas alguém que, tendo encontrado o Deus vivo e verdadeiro no seguimento de Jesus Cristo, assume a Boa Nova do Reino e a anuncia na sua totalidade, sem facilitações e “promoções especiais”, mesmo sabendo que ela vai acabar incomodando todos aqueles projetos construídos segundo uma lógica que não pertence ao Deus de Jesus Cristo. O conflito, assim vivido, é um ato de evangelização.

Depois de visitar Jerusalém, fomos até Aim Karen onde nasceu João Batista e aconteceu o encontro entre Maria e Isabel. No lugar parece ainda ecoar o canto de alegria que as duas entoaram por terem sido visitadas e escolhidas por Deus. O coração do peregrino se envolve nessa dança e exulta pelos prodígios que Deus é capaz de realizar. O prólogo do Mistério da encarnação tem como protagonistas duas mulheres: uma pobre adolescente de uma cidadezinha insignificante e uma velha mulher estéril. Numa época em que as mulheres contavam pouco, a história terrena de Jesus inicia com duas mulheres e acaba com as mulheres, entre elas uma ex prostituta, que na madrugada de Páscoa, se dirigem ao túmulo de Jesus e, ao encontrá-lo vazio, correm trepidantes de alegria tornando-se as primeiras testemunhas de sua Ressurreição.

A participação efetiva das mulheres na vida de Jesus, sobretudo no mistério da encarnação, não é pura coincidência. A primeira morada de Deus foram as entranhas maternas, pois Ele, logo de início, quis se manifestar como um Deus misericordioso (EL RAHUM). Misericórdia è um termo que nos Evangelhos é  reservado a Deus. A palavra tem significação de maternidade e fecundidade. A partir da raiz dela se formam palavras que significam útero, seio, entranhas, amor, piedade, graça, coração, bondade, ternura. O gesto de abraçar está ligado a este termo. Até a palavra coruja (Raham) significa ave que ama ternamente seus filhotes. Os adjetivos bondoso, compassivo, amoroso são da mesma raiz. Em árabe, língua irmã, é a mesma palavra e indica acariciar, afagar, aquecer. E assim por diante. Na parábola, quando o pai viu o filho perdido voltando, sentiu misericórdia. O amor tocou o seu coração e lhe deu uma vontade louca de abraçar o filho que volta para casa. Usa-se também o termo “entranhas de misericórdia”. Sentiu nas entranhas, isto é, no íntimo. O cuidado de Deus pelos pequeninos e sofredores toca seu íntimo, como se fosse um movimento nas entranhas. É por isso que na fase decisiva da história da salvação, quando era sua intenção mostrar seu jeito de ser misericordioso, recorreu às mulheres que assumem com alegria sua maternidade porque ninguém melhor do que elas sabem o que significa amar de verdade a vida que brota de dentro delas e que carregam com cuidado durante toda a gestação.

No dia seguinte fomos em direção à Galileia. Comovente para mim tem sido, sobretudo a visita a Nazaré. Na Basílica da Anunciação se guarda, segundo uma forte tradição, a casa onde Maria recebeu o anúncio di Arcanjo Gabriel. Na gruta impressiona a frase: "Aqui Deus se fez carne". Quão grande e inefável é o Mistério da Encarnação. Foi a partir daquele humilde lugar, no ventre de Maria, pobre menina adolescente, que Deus entrou “de corpo e alma” na história, colocou o pé no chão, assumiu a nossa condição humana para tornar mais fácil o nosso caminho de volta à nossa identidade de filhos e filhas de Deus. Foi em Nazaré que Ele viveu o dia-a-dia do ser humano, o cotidiano e as banalidades da vida colocando nelas o sentido pleno da Vida. Saindo ao nosso encontro Jesus acabou com o esforço desumano e quase sempre fracassado de se elevar até Deus. Ele mesmo se abaixou dando vida a uma espiritualidade que parte de baixo, da nossa realidade com todas suas contradições e limitações. O Deus misterioso, invisível e transcendente, se fez descendente, assumiu em Jesus um rosto humano, se fez conhecido, próximo, presente e solidário. Arrancou de si mesmo todo tipo de mistificação, de ideologia, de imagens assustadoras criadas pelos homens para subjugar os seus similares e mostrou o seu rosto paterno, misericordioso, cuidadoso, cheio de amor e de ternura. Foi em Nazaré que, na sinagoga, Jesus pronunciou a segunda Palavra chave “hoje” que marcou o ingresso definitivo do Eterno no ritmo do tempo que, a partir daquele momento, não marca mais um vagar sem sentido rumo o abisso do nada, mas se torna um “Kairós”, isto é, oportunidade para experimentar a Graça de seu amor.  Com o “hoje” pronunciado por Jesus a história de Deus e aquela da humanidade se cruzam definitivamente e os dois passam a caminhar juntos rumo à plenitude do Reino.

A partir de Nazaré, andamos pela Galiléia revivendo os principais acontecimentos da vida de Jesus. Relemos o discurso programático de Mestre na sinagoga de Nazaré, fazendo memória de seu projeto missionário. Visitamos os lugares onde Jesus se fez próximo dos últimos renovando nossa opção pelos mais pobres. Paramos em Cafarnaum para viver a “jornada missionária de Jesus” dividida entre a partilha da fé de seu povo na sinagoga, a visita à sogra de Pedro que estava doente para colocá-la de pé e torná-la apta ao serviço apostólico, o contato com os doentes e o retiro em oração durante a noite. Visitamos o lugar da multiplicação dos pães e dos peixes lembrando que na Eucaristia Jesus doa sua vida para nós e nos convida a partilhar o que somos e o que temos com os outros. Celebramos a Eucaristia, na beira do mar de Tiberíades, perto da rocha onde Jesus Resuscitado, após questionar Pedro por três vezes sobre a autenticidade de seu amor, lhe entregou o cajado do pastoreio, lembrando que os requisitos principais de qualquer liderança religiosa são o amor e o espírito de serviço.  Navegamos pelo Mar da Galiléia deixando-nos acariciar pela brisa que parecia trazer de longe a voz do Mestre chamando seus apóstolos. Passamos por Cana onde houve a festa de casamento. Pedimos os dons da alegria e da festa. Subimos o monte das Bem-Aventuranças, “lugar teológico” onde Jesus, o novo Moisés, dá um chega a todo tipo de legalismo e formalismo e, no lugar de leis e prescrições escritas na pedra, invés de obrigações e posturas exteriores, propõe a seus discípulos um jeito de ser profundamente permeado de amor, justiça, paz, mansidão, ternura e misericórdia. Fomos ao Monte Tabor onde Jesus, através da transfiguração, revelou aos dois apóstolos sua verdadeira identidade, operando uma transformação da sensibilidade dos próprios apóstolos que puderam até que enfim perceber que aquele com quem tinham partilhado parte de suas vidas, não era qualquer um, mas o próprio Filho amado de Deus. Aqui paramos para um prolongado momento de oração pessoal. Era necessário. A transfiguração de Jesus coloca em questão nossa “desfiguração”. Devemos reconhecer que vivemos cada vez mais desfigurados pelo egoísmo e a maldade que toma conta de nosso coração. Estamos assumindo cada vez mais uma “figura” que nos afasta uns dos outros, que nos torna inimigos, que nos leva a crer que nesse momento de crise a única alternativa é desenvolver as unhas predatórias. No lugar de dar a vida, a arrancamos dos outros. Estamos assumindo uma imagem contrária àquela que Deus imprimiu em cada um de nós. Estamos nos des-figurando.

No Monte Tabor Jesus se transfigura, isto é, revela a si mesmo e torna transparente nossa verdadeira imagem. Somos filhos de Deus no Filho amado. O nosso verdadeiro rosto é o de Cristo que se doa até as últimas consequências. A nossa “figura autêntica” é aquela do Amor. É essa a imagem que nós cristãos somos interpelados a fazer transparecer. Portanto, no Monte Tabor somos chamados a operar a nossa transfiguração, a tirar a máscara, a arrancar a casca do egoísmo e a fazer aparecer os tratos do Pai, sobretudo a ternura e cuidado para com todos, inclusive para com nossos inimigos. Sem essa “cara” perdemos a nossa credibilidade.

Descemos o Monte Tabor e paramos a Tel Dan. Ficamos impressionados com o parque onde se encontram as nascentes do Jordão. Parecia de estar no Paraíso Terrestre. Aqui nos banhamos naquela água que brotava suavemente das entranhas da terra e, de repente, se tornava uma torrente impetuosa. Na volta para Jerusalém paramos ao Monte Carmelo para respirar o espírito profético de Elias.

De volta a Jerusalém, visitamos a Samaria onde o que mais me marcou foi o poço de Jacó onde Jesus encontrou a Samaritana. Não tem limites para ação libertadora de Jesus. Entra até nos territórios onde moram os que eram considerados “heréticos” e, portanto, eram desprezados pelos judeus e se aproxima de uma mulher com uma história marcada pelo pecado. Eis aqui um ícone de nosso ministério. O Deus de Jesus Cristo é o Deus de rua, que anda pelos caminhos humanos, inclusive pelas ruas e vielas que não gozam de boa fama, e vai ao encontro daqueles que são mantidos a distância. Não faz um sermão cheio de bons princípios e de verdades abstratas, mas parte justamente da história daquela mulher, a escuta com respeito, não pronuncia palavras de condenação, a valoriza, pois é a ela que o Mestre pede água para matar sua sede, a compreende e a acolhe, criando o terreno para que a Samaritana possa descobrir que no fundo de seu próprio poço Deus, desde o início, colocou uma fonte de água viva que é a única a dar sentido e plenitude à sua vida. A descoberta que nasce desse encontro, método próprio da pedagogia da presença que Jesus utiliza em seu serviço missionário, faz da Samaritana um mulher totalmente renovada e comunicadora dessa mesma experiência para os outros. É interessante que aqui é venerada como Santa Fotina (do grego fotos que significa luz), isto é, a santa que levou a luz que iluminou sua vida a todos os seus conterrâneos. Eis aqui o percurso que cada um de nós é chamado a fazer para ajudar os outros a percorrer o mesmo caminho de maneira que, de luz em luz, possamos criar aquela luminosidade que é capaz de derrotar as trevas. O sol é o conjunto das estrelas que nas trevas da noite andam cada um por sua conta.

Enfim no último dia fomos a Belém. Parece estranho acabar a peregrinação na Terra Santa justamente pela etapa que deveria ser uma das primeiras. Mas, no fundo no fundo, mesmo sendo uma questão de organização da viagem, tonou-se um motivo de reflexão. O desafio começa já na hora de entrar. Para ter acesso à Basílica da Natividade precisa se agachar. As portas são pequenas, pois foram feitas dessa forma para impedir a entrada dos cavalos dos predadores. No “mundo do Deus que se fez pequeno” só se entra se fazendo pequenos. A gruta é de uma simplicidade assustadora. Não deu para parar muito tempo perto da estrela que marca o ponto onde, segundo a tradição, Jesus nasceu, mas foi tempo suficiente para pedir ao Menino Jesus um presente especial: o dom da kénosis, isto é, do esvaziamento, do abaixamento, de destronização do ego, da humildade para deixar espaço a seu amor e partir para a missão com os seus mesmos sentimentos, com suas posturas e suas atitudes. O tempo foi curto, mas suficiente para dar um nó na cabeça. Como já escrevi em outra oportunidade, não dá para entender suas vindas ao nosso encontro enquanto nós fugimos de sua presença. Não dá para pensar em sua obstinação a descer no meio de nós, enquanto nós faríamos qualquer coisa para sermos deixados em paz. Não dá para entender sua vontade louca de mergulhar em nossos problemas, enquanto nós faríamos de tudo para nos livrar deles. Não dá para entender como Ele seja capaz de se despir de sua divindade enquanto nós não conseguimos descer do pedestal da idolatria do nosso orgulho. Não dá para imaginar como Ele sinta vontade de assumir nossa natureza humana enquanto nós queríamos nos livrar dela para satisfazer nossa sede de poder. Não dá para encarar a sua fragilidade enquanto nos esforçamos de mostrar a qualquer custa a nossa autossuficiência. Não dá para entender sua obstinação a se tornar criança enquanto nós fazemos questão de nos sentirmos grandes. Não dá para entender porque Ele se fez pobre, enquanto nós gastamos um monte de energias para nos encher de coisas inúteis e nos matamos de trabalho para possuir o supérfluo. Não dá para nos dar conta do seu amor por nós, enquanto nós nem conseguimos amar a nós mesmos de verdade. Não dá para entender a gratuidade do seu amor pelos outros, enquanto nós não conseguimos disfarçar nossos interesses. Não conseguimos entender sua paixão pela vida, enquanto nós nos dobramos ao poder da morte. Não conseguimos entender, mas sua maneira de ser nos fascina. Demoramos em compreender, mas queremos ser do seu jeito. Estamos cansados, mas renovamos nosso compromisso em defesa da vida e da dignidade humana. A fragilidade do Deus feito criança seja a nossa força.

Deus me sugeriu três palavras: esperança, sabedoria e fidelidade

No dia 29 de maio, penúltimo dia dessa romaria, de volta para Jerusalém, passei a madrugada em oração. É difícil dormir com a cabeça cheia de tantas lembranças. Em todos os lugares rezei muito por vocês todos. Carrego uma lista com os nomes de todos para não esquecer ninguém. Durante a oração dessa madrugada Deus me sugeriu três palavras: esperança. sabedoria e fidelidade. Não podemos perder a esperança, pois Deus é sempre fiel às suas promessas e nos concede, como fez até agora, sabedoria, para escolher o que é conforme a sua vontade e dá sentido a nossa e à vida dos outros. Faz parte da vontade de Deus cuidar das crianças e dos pequenos: "Deixem que as crianças venham a mim. pois a elas pertence o Reino de Deus... E abraçando-as as abençoava" (Mc 10,13-16). A Igreja e os cristãos têm como obrigação o cuidado para com as crianças, sobretudo as mais abandonadas. Custe o que custar. Elas constituem uma profecia, pois anunciam para nós que o único jeito de entrar no Reino é se tornar como elas, isto é, cheias de vontade do abraço paterno, cegamente confiantes no seu afeto,  repletos de desejo de imitar o Pai da mesma forma como os pequenos se identificam com seu genitor, felizes de ver o Pai orgulhoso por nós. Pedi esperança, fidelidade e sabedoria para mim e para vocês todos. Não desistamos da luta. Hoje em dia temos também a Palavra nunca tão forte de um papa que nos interpela a ir para as periferias sociológicas.

Queria aproveitar a oportunidade para agradecer de coração todos vocês pela amizade, pelo apoio, pela solidariedade seja para comigo, seja para com a minha mãe. Graças a Deus eu estou melhor e para minha mãe conseguimos uma solução que me torna mais tranquilo e pronto para voltar. Obrigado por tudo aquilo que o Brasil me ensinou, sobretudo à Pastoral do Menor, à Pastoral Carcerária e à Arquidiocese de Vitória, em nome do dom Silvestre e do querido dom Luís que sempre nos animou a servir os mais pequenos. Obrigado ao P. Kelder, à Marta, Dilma, Verônica, Sônia, a família do Marcelo, Reis, Célia, os seminaristas de São Mateus, Gilmar, Bruno, Dr. Pedro, a todos os que integram o sistema de defesa e promoção dos direitos da criança e do adolescente, a toda a equipe da Rede AICA e dos projetos da Pastoral do Menor, à Caritas, às combonianas que sempre foram irmãs para mim, ao povo das comunidades da Paróquia São José Operário, aos meus confrades e aos muitos outros companheiros e companheiros que Deus, em sua infinita bondade colocou ao meu lado ao longo da minha caminhada e que, durante os anos que passei em Vitória, cuidaram de mi, me consolaram nos momentos difíceis e me animaram a continuar o serviço missionário aos pequenos. Um obrigado muito grande às crianças e aos adolescentes que tanto me ensinaram e tanto me enriqueceram ao longo de toda essa experiência.  Naturalmente obrigado de coração também a todas as equipes pela firmeza na luta em defesa da vida. Depois de 28 anos de consagração religiosa, dos quais quase 25 anos de trabalho pastoral no Brasil, sobretudo com as crianças e os adolescentes, estava precisando muito desse momento intenso de silêncio, de reflexão, de síntese e de fortalecimento, voltando às fontes da minha vocação: Jesus Cristo e São Daniel Comboni. Estou prestes a voltar ao Brasil para onde Deus e meus superiores me destinarem. Teremos oportunidade de nos encontrarmos e matar a saudade.

Quero agradecer aos superiores que me proporcionaram essa oportunidade e ao irmão Guillermo, P. Danilo e P. Ciro que me acolheram, cuidaram de mim durante todo esse tempo e, com muita sabedoria, organizaram e executariam o curso. Obrigado enfim por todos os companheiros de oito nacionalidades diferentes que Deus colocou ao meu lado durante essa experiência.

O Deus da Vida continue dando a mim e a todos vocês sabedoria, saúde e força para continuar nessa batalha em defesa dos pequenos. Uma das imagens mais fortes que levarei comigo dessa Terra Santa, além de todas as experiências fortes que eu vivi, é aquela de uma escolinha de crianças beduínas do deserto. Os beduínos é um povo que foi excluído por Israel. Vive à beira da estrada, em acampamentos que muito lembram o povo sem terra. É bonito ver como de toda a Europa voluntários de toda formação acadêmica vem aqui para ajudar gratuitamente um povo dos mais pobres e abandonados. Israel arrancou dos beduínos a água e a terra. Eles não têm onde pastar seus rebanhos e, sendo prevalentemente pastores, vivem na mais absoluta miséria. A única solução que Israel propõe é que se tornem israelitas, portanto todos os jovens devem fazer dois anos de serviço militar. Os beduínos resistem. Não querem perder suas tradições. Por isso pagam o preço. Sua resistência, que lembra aquela do mandacaru, seja estímulo para a nossa resistência. Apesar da miséria de suas barracas, dentro delas eles mantêm seus tapetes e praticam uma acolhida impressionante.

Visitamos uma escolinha feita com pneus recheados de terra. É a única forma que encontraram para ter uma escola no acampamento, visto que a comunidade tem várias ordens de despejo. Há quatro anos os beduínos lutam na justiça para derrubá-la. Em força dessa ordem de despejo é proibido construir no acampamento. Os pneus dão a ideia de uma estrutura provisória. No acampamento que visitamos há 87 crianças estudando. A autoridade palestina coloca à disposição os professores. A provisoriedade e a simplicidade da estrutura revelam a ousadia de um povo que luta para garantir seus direitos e reconhece que a educação de seus filhos é prioridade na formação da cidadania. Tudo isso questiona a crença de muitos de nós que acham que são as estruturas a mudar a história e se queixam quando não têm meios suficientes para realizar o trabalho. Quem milita na luta pela cidadania não deve se importar muito com as estruturas, pois é possível fazer um trabalho significativo mesmo com a pobreza de meios, sobretudo quando as pessoas envolvidas acreditam de fato naquilo que fazem.

A lição que fica

Sei do sofrimento do povo de Israel ao longo da história. Fomos visitar o Museu do Holocausto (Yad Vashem) em Jerusalém para fazer memória da tragédia que o nazifascismo e toda forma de antisemitismo provocaram contra os Judeus. Fiquei muito comovido com a sala dos nomes que dão um rosto e uma identidade concreta às vítimas para calar a boca definitivamente a quem nega a existência do holocausto. Mas, fiquei sensibilizado, sobretudo com o memorial das crianças judias, mortas nos campos de concentração nazistas. É um espaço escuro, todo de vidro, onde há milhares de velas e uma voz pronuncia o nome de toda criança que foi tragicamente assassinada pelos nazistas. Dá calafrio. Dá vontade de sair logo. Senti-me sufocado naquele espaço, dramaticamente impotente diante daquela e das muitas outras monstruosidades que a desumanidade é capaz de realizar contra os pequenos. Lembrei-me de um testemunho de Elie Wiesel (A noite):

“Voltávamos do trabalho uma tarde e vimos três forcas erguidas na praça do apelo: três urubus pretos. A nosso redor, os S.S., com metralhadoras apontadas: a cerimônia tradicional. Três condenados algemados. Um deles, uma criança, anjo dos olhos tristes[...]. Os três condenados subiram em suas cadeiras, juntos. Nos três pescoços foram colocados, ao mesmo tempo, os nós corrediços.
– Viva a liberdade! – gritaram os dois adultos.
O pequeno ficava calado.
– Onde está o Bom Deus? Onde está? – perguntou alguém atrás de mim. A um aceno do chefe do campo, as cadeiras foram retiradas [...]. Depois começou o desfile. Os dois adultos não viviam mais. A língua pêndula, engrossada, arroxeada. Mas a terceira corda não estava imóvel; embora levemente, a criança ainda vivia...
Mais de meia hora ficou assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando sob nossos olhos. Ainda estava vivo quando passei na sua frente. A língua ainda estava vermelha, ainda havia luz em seus olhos. Atrás de mim ouvi o mesmo homem perguntar:
– Onde está Deus, então?
E eu sentia em mim uma voz que lhe respondia:
– Onde está? Ei-lo: está pendurado ali, naquela forca...”.

No final dessa viagem é essa a lição que fica. A Terra Santa é um lugar significativo para o nosso caminho de fé, mas não podemos esquecer que se trata simplesmente de pedras. É importante preservar estes espaços, pois neles foi escrita uma das páginas mais bonitas da história: Deus e a humanidade que andam juntos rumo um mundo melhor. Mas precisa ter a mesma garra na preservação da vida daqueles que sofrem nesta e em outras regiões da terra. O sacrário da presença de Deus é o ser humano. Deus está, sobretudo onde a vida é pisoteada. Além de “custodiar” os lugares, temos que “custodiar” a vida, verdadeiro templo de Deus. Se, às vezes, como aconteceu nos campos de concentração ou em outras realidades Deus parece estar ausente, não é porque Ele não se faz presente, mas é porque nós não o tornamos presente através do nosso silêncio e da nossa omissão. A perseguição sofrida pelos judeus durante os séculos merece toda nossa solidariedade, mas não pode ser semente de novas violências. As vítimas de um tempo não podem se transformar nos agressores de hoje. A lição da tragédia sofrida pelos Judeus deve ser aquela de nunca mais permitir que certas situações aconteçam. Faz-se necessário criar um percurso que favoreça o encontro, o diálogo, o respeito pelas diferenças e as condições para uma pacífica convivência. Nessa nova história há Judeus, cristãos e muçulmanos que acreditam.

Um dos sinais de acolhida dos palestinos é a entrega de uma amêndoa, símbolo bíblico da fidelidade de Deus. Talvez seja por isso que, em alguns países, como na Itália, nos casamentos se entregam confetes com amêndoa dentro. A flor de amêndoa é uma das primeiras a florescer depois do rígido inverno, anunciando a chegada da primavera e da vida nova. O "inverno" passará porque Deus decidiu que a vida deve triunfar. O profeta Jeremias (1,11-16) com o símbolo da árvore da amêndoa diz ao povo que não tudo está perdido. Que Deus, apesar dos erros do povo, está disposto a começar tudo de novo, pois Ele vigia sobre a fidelidade de Sua Palavra. Basta que o povo se converta. O Deus dos nossos pais, que são comuns entre cristãos, árabes e muçulmanos, faça resplandecer sobre essa terra e no mundo inteiro o arco-íris da paz.
Um forte abraço.
Deus diga bem de todos nós
P. Saverio Paolillo, mccj

Lista dos participantes do Curso Comboniano de Renovamento - 2013, em Roma,
com a indição da província comboniana na qual o missionário estava trabalhando:
Fr. Baldo Guerrino (KE)
Fr. Enríquez Sánchez David (M)
Fr. Fregonese Gino Angelo (I)
P. Aguiñaga Pantoja Guillermo (M)
P. Andrés Miguel Pedro (E)
P. Cavalieri Giuseppe (BS)
P. Estrada Santoyo Gabriel (M)
P. Franco Lorenzo Conrado (E)
P. Garbagnati Alessandro (I)
P. Goffredo Donato (LP)
P. Guirao Casanova Antonio (E)
P. Joaquim Pinto da Fonseca (P)
P. José Francisco de Matos Dias (P)
P. Mazzon Renato (I)
P. Munguía Granados Francisco (KE)
P. Paoli Paolo (ET)
P. Paolillo Saverio (BS)
P. Pérez González Mariano (RSA)
P. Sandoval Luiz Dutra da Luz (BS)
P. Tapia Bustamante Jorge Hernán (PE)
P. Verdoscia Luciano (EG)
P. Wilkinson Patrick Michael (LP)
P. Woldai Agostino Tesfai (ER)