Quarta-feira, 4 de Outubro 2017
São 5:00 horas da manhã do dia 10 de Agosto de 2017 e a agitação dentro do avião sugere que a aterragem em solo moçambicano esteja para breve. Alguns ainda dormem. Está a ser um voo tranquilo, com tempo para tudo: descanso, assistir filmes, impaciência, vontade de esticar as pernas, beliscões – “isto está mesmo a acontecer!”. O senhor que viaja à janela, à minha esquerda, abre a “cortina”. Uau! O dia está a amanhecer, sou uma abençoada: o primeiro, primeiríssimo milagre que testemunho nesta terra é o nascer do Sol. Magnífico. Nada mais vejo senão um quadro pincelado com cores quentes. É impossível ficar estéril a tamanha beleza, aquelas cores enchem-me de alegria e aquecem-me. Fazem-me ter vontade de aterrar agora mesmo. [Marisa Almeida, na foto ao centro, antes de partir para Moçambique].
Marisa Almeida (à esquerda)
e Katarzyna Tomaszewska,
LMC na Carapira,
Moçambique.
Estou em Moçambique! Cheguei a Maputo. Está quente e os cheiros notam-se ainda mais com o calor. As cores contrastam entre si mas o azul da baía parece unir-se ao céu. As pessoas são sorridentes e curiosas. Há alma nova aqui. A vida acontece num ritmo bastante singular.
À minha espera no aeroporto estava o Padre Paulo, Missionário Comboniano. Aguardava-me com uma revista “Audácia”, sorri assim que me apercebi do “código de localização/ identificação” – “menos é mais” e “para bom entendedor meia palavra basta”.
Levou-me até à Casa Provincial. Pelo caminho mostrou-me uma e outra coisa. Passei a manhã com aquela Comunidade de Maputo.
Depois de almoço seguirei para o aeroporto. Se Deus quiser, ao final da tarde estarei em Nampula com a Kasia.
Estaria mais ou menos a meio da viagem de Maputo para Nampula quando Samuel, de 6 anos, começou a percorrer o avião de um lado para o outro repetidamente. A almofada com que brincava caiu perto do meu lugar. Apanhei-a e estiquei o braço para a devolver.
– English? Abanou a cabeça para a esquerda. Português? Abanou a cabeça para a direita.
– Português, abanei a cabeça para o lado concordante. Rimos e fizemos “mais cinco!”.
Brincamos e conversamos um pouco sobre tudo e sobre nada.
A dada altura contou-me:
– Vou encontrar a minha família, os meus irmãos. E tu?
– Eu também – respondi sem pensar.
Apercebi-me instantes depois da resposta que lhe dera: “eu também” … Deus queira e me ajude para que assim seja!
Aterrei em Nampula ao final da tarde. Estava já escuro. Ainda estava à procura das malas quando a Kasia entrou na «sala» … Que bom sentir-me acolhida e recebida com aquele entusiasmo que a fez “invadir” aquele espaço para vir ao meu encontro!
Dali seguimos para a casa das Irmãs. Jantamos, conversamos, descansamos. Ao ir para o quarto dei-me «realmente» conta da novidade que estava a acontecer: rede mosquiteira na cama. Não há como enganar, “isto está mesmo a acontecer!”.
Deitei-me feliz e agradecida a Deus por todas as graças que tive até agora, particularmente, ao longo do dia de hoje. O resto, que seja como Ele quiser.
Sexta feira, 11 de agosto de 2017
Esta tarde, eu e a Kasia, retomamos caminho, agora para Carapira, onde está a nossa missão, a nossa casa. Pelo caminho deliciei-me com a paisagem. A minha primeira ou ‘maior’ impressão de África, de Moçambique, é o espaço – um espaço a perder de vista e em que todos os caminhos são longos, em que há um silêncio da própria paisagem que se faz sentir dentro de nós. Uma paisagem infinda que pede um tempo paciente e demorado para a contemplação. Confio que seja impossível não se ficar extasiado com esta poesia que habita o mundo e que é uma imensidão, o horizonte de Deus.
À noite, depois do jantar, recebemos em nossa casa um casal de leigos locais, os Professores Martinho e Margarida, as Irmãs Combonianas (Irmãs Clarinda, Eleonora, Maria José e Teresinha), o Irmão Luigi e o Padre Firmino. Foi um momento bonito e alegre de convivência que provou, uma vez mais, o sentido de hospitalidade, sobretudo, que aqui se vive.
Quarta feira, 16 de agosto de 2017
Acordei esta noite a pensar que a hora para me levantar estaria próxima. A falta de luz, dentro e fora do quarto, diziam-me que não. Peguei na lanterna, apontei para o relógio pousado junto à cama e os ponteiros confirmaram-me que era noite, e bem noite. Tinha, pelo menos, umas três horas até aos primeiros sinais do dia. Não consegui adormecer. Sentei-me na cama, encostei-me à parede e descansei na quietude tão singular que aqui se encontra em horas como aquela. “Que paz!”, pensava, enquanto lembrava aquela bonita expressão que tanto sentido me fez de S. João da Cruz – “a noite é o tempo da casa sossegada”.
Quinta feira, 17 de agosto de 2017
Esta manhã fui pela primeira vez ao bairro, à comunidade. No caminho de regresso o meu coração vinha cheio de alegria. Brinquei com as crianças. Àquelas que me falavam em macua, não consegui compreender o que me diziam. Assim como elas não me compreendiam também. Mas rimos e brincamos, e com esta alegria de sermos crianças conseguimos assegurar afetivamente alguma comunicação não verbal. Com as crianças, até agora, pelo menos, tem funcionado…
Ao passar na entrada da escola, à conversa com Sérgio estava uma senhora. Cumprimentamo-nos:
– Salama! Ihàli?
– Salama! Khinyuwo?
E não deu para mais. Se não contasse com a ajuda de Sérgio, não teria percebido o que a senhora me tentava comunicar. Por um lado, sentia-me agradecida: pela senhora que, mesmo compreendendo que eu precisava de tradução sistemática, não desistiu de falar comigo e de me contar como estava a família e saúde; pela pessoa que me acompanhou e traduziu pacientemente a conversa. Por outro lado, sentia-me envergonhada por não conseguir alcançar o que me estava a ser dito (não só ali, naquele bocadinho, mas durante toda a manhã, e noutros momentos singulares durante a semana, exemplarmente, na eucaristia de Domingo que fora celebrada em língua Macua).
“Depender de traduções exige paciência e humildade… ajoelha-te Marisa, faz-te pequena e sente-te grata”, consolei-me.
Voltei a casa. Estava a arrumar umas coisas quando ouço uma voz jovem:
– Hoti? (Dá licença?)
– Hotìni (faça favor), respondi.
Abri a porta e uma jovem esperava-me com um sorriso. “Oh, bolas! Estou sozinha em casa… se me vem pedir ajuda para o que quer que seja, eu não sei como lhe responder porque ainda não conheço nada…”, pensava enquanto saía…
– Sou Ancha, ouviste falar de mim? Vim me apresentar e dar as boas vindas…
Lá conversamos durante um bocado. «Tempo» … as pessoas aqui conversam e “gastam” tempo uns com os outros – desinteressadamente. Aquele preliminar foi mais uma lição. Aprende, Marisa.
À despedida disse-me qualquer coisa em macua. Não compreendi nem consegui devolver-lhe uma resposta. “Tenho que aprender qualquer coisa de macua… é o mínimo que sinto que posso fazer, para já, como reconhecimento a tamanha hospitalidade do povo…”, disse para mim mesma ao entrar em casa.
Ainda assim… apesar do desconforto que podemos sentir quando não sabemos alguma coisa, não saber «nada» também traz alguma saúde interior e criatividade.
Marisa Almeida, LMC em Moçambique