Quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
Recentemente, o P. Fernando Domingues foi convidado pelos missionários espiritanos portugueses, reunidos em assembleia provincial, a falar sobre o tema “Missionários consagrados, na Igreja local”. Para o P. Fernando, superior provincial dos Combonianos em Portugal, a presença dos institutos missionários na Igreja local são «a memória viva da missão…, uma presença que ajuda as comunidades a sentirem-se em caminho com uma Igreja que é muito mais ampla do que os limites ‘da nossa freguesia’».

Missionários consagrados, na Igreja local

1. Vida consagrada: dom de Deus com o qual o Espírito Santo habilita a Igreja a responder profeticamente a novas situações de fronteira

O nascimento da vida consagrada, nas suas muitas e variadas expressões, na Igreja foi sempre a expressão de uma realidade nova que o Espírito Santo faz nascer para responder a ‘necessidades de fronteira’ que a Igreja está a experimentar. Desde os primeiros monges e monjas nos desertos do Egito e da Síria ou na Palestina, até à necessidade de evangelizar novos territórios que as descobertas, o comércio marítimo, a colonização… abriram à presença de gente vinda de ‘países cristãos’.

A história mostra que quase sempre a vida religiosa esteve no centro dos grandes momentos de renovação da Igreja. Que renovação é precisa na Igreja de hoje em Portugal? Qual o contributo que somos chamados a dar?

2. Vida consagrada, parte integrante da vida e missão da Igreja local

O Vaticano II quis deixar muito claro que a vida consagrada não é uma realidade paralela à Igreja local, pertence à vida normal e corrente das Igrejas locais, é parte integrante do seu caminho de santidade, e participa plenamente na sua missão de anunciar e testemunhar o Evangelho para que o Reino de Deus fique cada vez mais presente.[1]

É normal que os pastores da Igreja se esforcem para que em cada Igreja estejam presentes e ativas as várias formas de vida cristã: laical em todas as suas expressões, consagrada (masculina, feminina, ativa, contemplativa, …). A presença de comunidades religiosas de vários tipos é típica de uma Igreja viva. Os consagrados e consagradas não são um ‘apêndice’ na vida normal das dioceses, são parte integrante da sua vida e missão.

3. Uma só Igreja, com dinâmicas institucionais e associativas

A Igreja, sacramento da presença de Cristo no mundo, é sinal e instrumento dessa transformação que Cristo via realizando na força do Espírito, nos vários âmbitos da realidade humana. A Igreja realiza o seu ser sacramento de Cristo em todos os aspetos da sua vida, a começar pelas famílias cristãs que encarnam no dia a dia essa presença transformadora do Espírito de Cristo. A liturgia celebra em momentos culminantes e de maneira explícita a realidade que a Igreja – corpo de Cristo – vai vivendo no dia a dia de todos os seus membros e em todos os seus grupos.  

Quando dizemos que a Igreja tem uma estrutura fundamentalmente sacramental, é antes de mais a esta realidade que nos referimos. A vida sacramental da Igreja vive-se no dia a dia de todos os seus membros e celebra-se ocasionalmente nos rituais que chamamos os ‘sacramentos’. A Igreja local, reunida à volta de um pastor (‘estrutura petrina’) ou de uma equipe de pastores (‘estrutura paulina’) vive desde sempre como uma realidade poliédrica, com elementos necessários a nível de organização institucional – pároco/s, bispo, conferência episcopal, … – e outros elementos que são mais de carácter ‘associativo’ – movimentos, associações, grupos de consagradas e consagrados mais ou menos estruturados.

A expressão ‘Igreja hierárquica’ (falando de papa, bispos, padres), é gravemente deficiente. Não corresponde à realidade. O que temos é uma Igreja – corpo sacramental de Cristo constituído por todas as vocações e estados de vida dos batizados – que tem ao seu serviço una estrutura de ministros ordenados que vivem nela (e não acima dela!) e que a coordenam e animam desde dentro.

Desde sempre, o Espírito suscita o serviço hierárquico, mas suscita também várias ‘formas associativas’[2] de vida cristã que pertencem de pleno direito e dever à vida das comunidades cristãs da Igreja local. É perfeitamente natural que haja momentos de diálogo difícil entre quem tem o serviço de presidir (coordenar e animar) na Igreja local, e as comunidades de consagrados/as que participam plenamente na vida dessa Igreja local.

As ‘expressões associativas’ de vida cristã são chamadas a viver um estilo de vida e serviço que é um desafio permanente para todos na comunidade cristã, pastores e fiéis. Aquilo que é chamado a ser desafio e complementaridade, facilmente pode ser vivido como conflito e concorrência. A Mutuae relationes de Paulo VI (1978), mostra como todas essas dinâmicas se articulam mais ou menos harmoniosamente no viver da Igreja.

As várias formas de vida consagrada não são realidades ‘paralelas’ à Igreja local, nem ‘hóspedes’ nela, são, isso sim, elementos constitutivos da vida normal dessa mesma Igreja local. A Igreja pode viver sem um ou outro instituto religioso, mas não pode viver sem grupos proféticos através dos quais o Espírito Santo estimula, critica, e ilumina a comunidade eclesial inteira. A participação dos consagrados na Igreja local exige a presença equilibrada de duas ‘sabedorias’: Da parte dos pastores, coordenar sem dominar; da parte dos consagrados, participar e ajudar sem invadir e sem criar antagonismos.

4. Consagrados missionários, recurso na Igreja Local

a) Memória viva do Evangelho

As comunidades de consagrados e consagradas, na Igreja, exprimem, cada uma delas, uma escolha radical de dar ‘prioridade absoluta a Deus’. Colocando a ‘busca de Deus’ como primeiro objetivo em tudo e acima de tudo o que se faz, estas comunidades são, com a sua maneira concreta de viver, uma ‘memória evangélica’[3] no coração da Igreja local.

Elementos concretos desse ser ‘memória evangélica: além das expressões concretas da ‘busca de Deus’ que constitui o centro dinamizador da vida pessoal e comunitária de todos os consagrados, podemos mencionar também a escolha radical de viver essa busca de Deus não como caminho individual mas como percurso feito com irmãs/irmãs de comunidade que aceitamos como dom (que não escolhemos!); outro elemento sempre (?) visível é que cada família religiosa lembra a todos com particular vivacidade aquela ‘página de evangelho’ que inspirou o seu carisma específico.

b) Memória presente da missão

Alguns pensadores que refletem sobre a presença dos institutos missionários ad gentes na Europa hoje, notam “um desenraizamento dos institutos missionários das Igrejas locais da Europa. Por um lado, parece que as Igrejas da Europa já não reconhecem os institutos missionários como a sua expressão missionária atualizada”. Quando se fala de ‘missionários’ muitos pensam nos jovens que vão passar dois meses em Cabo Verde, ou um mês em Angola, ou mesmo nos jovens estudantes que participam na ‘Missão país’, durante o Verão.

Por outro lado, é verdade também que muitos de nós nos sentimos longe da sensibilidade das Igrejas Europeias e nos sentimos ‘hóspedes’ aqui, à espera de poder partir de novo.

O que vivemos lá longe é útil a esta Igreja em que nos encontramos?

Perante uma situação parecida com a que estamos a viver aqui (pouco clero, situações de injustiça, estruturas insuficientes, ‘faixas de população’ não evangelizados, …) na Igreja local onde eu trabalhei lá longe, as comunidades cristãs tentavam responder desta maneira…”. O testemunho concreto de quem trabalhou na missão da Igreja ‘lá longe’, um recurso rico e um desafio permanente que ajuda a Igreja local a encontrar respostas evangélicas para as situações que vai vivendo.

A memória viva da missão, presente na Igreja local pode confirmar a autenticidade evangélica do seu caminho; pode ser também uma crítica construtiva que ajuda a corrigir elementos do passado e a encontrar caminhos novos. De qualquer modo é uma presença que ajuda as comunidades a sentirem-se em caminho com uma Igreja que é muito mais ampla do que os limites ‘da nossa freguesia’. A presença de uma comunidade missionária é um desafio e um estímulo permanentes a procurar o caminho certo alargando os próprios horizontes.[4]

c) Memória profética da catolicidade

Este elemento é particularmente específico dos institutos ‘ad gentes’ como Testemunhas vivas da universalidade da Igreja. O ‘regressar e contar o que se anunciou e se fez’ enriquece e estimula a vida e o caminho da Igreja local: “E, regressando os apóstolos, contaram-lhe tudo o que tinham feito” (Lc 9, 10). Barnabé e Paulo: “Ao chegarem (a Antioquia de onde tinham sido enviados), reuniram a Igreja e puseram-se a referir tudo o que Deus fizera com eles, especialmente abrindo aos gentios a porta da fé” (At 14, 27).

d) Promotores do ‘caminhar missionário da Igreja’

Com o andar dos tempos, o Espírito Santo guia a missão da sua Igreja ao encontro de novos desafios. A história nos mostra que os institutos são normalmente os primeiros a perceber os desafios da missão que as novas situações da humanidade apresentam, e é nos seus dinamismos criativos que se esboçam as novas respostas da Igreja.

Alguns exemplos:

No tempo dos descobrimentos portugueses (Séculos XVI-XVII) – a presença dos Institutos religiosos na evangelização dos novos mundos. A ‘parte institucional da Igreja’ seguiu o seu caminho com a instituição da Propaganda Fide (1622).

A passagem do ‘Ius Comissionis’ à promoção do clero local e da Hierarquia local.

A passagem da ‘missão ad gentes’ (unidirecional, monocultural) à ‘missão inter gentes’ (multidirecional, intercultural, missão circular).

Hoje, é importante que nos perguntemos: o mundo futuro que já está a chegar, o que vai exigir do coração missionário da Igreja? E o nosso instituto onde se quer colocar na resposta que a Igreja há de dar?

Na missão ‘inter-gentes’ (entre todos os povos) que já está em movimento na Igreja universal, os Institutos de consagrados missionários que serviço específico podem oferecer?

Sugiro algumas possibilidades que começam já a atuar-se:

  • Estabelecer comunidades que tornam presente na Igreja local a ‘biodiversidade’ da Igreja ‘poliédrica’ universal? Testemunhas da fraternidade possível entre consagrados de culturas e tradições diferentes?
  • Testemunhar como um mesmo carisma se pode transformar de muitas maneiras segundo os desafios que encontra em cada Igreja local? Em vez de um carisma vivido de maneira igual no mundo inteiro, os espiritanos, ou combonianos, … viveriam o mesmo carisma de forma diferente em África ou em América ou na Europa…
  • Testemunhar a ‘missão circular’: dar e receber – missionários da Indonésia em Portugal e portugueses em Angola…
  • Promover e facilitar intercambio de pessoal, informação, meios, … entre Igrejas locais onde o mesmo instituto está presente? – Aqui, as nossas revistas missionárias poderão oferecer um serviço de primeira qualidade partilhando reflexão e informação entre todos os participantes na missão universal da Igreja.

5. Como narradores de uma história viva

Somos Testemunhas que contam o que têm vivido, não como estudiosos de coisas longínquas, nem como ‘repórters em missão no estrangeiro’, mas sim como ‘narradores cuja vida faz parte da história que contam’.

A própria vida pessoal e comunitária do grupo de missionários que vive e participa na Igreja local, torna-se uma ‘narrativa que se oferece sem se impor’, uma narrativa que adquire uma sua força própria que vai além do que os seus próprios atores pretendem ser e fazer.

Uma comunidade missionária que vive com autenticidade o seu carisma na Igreja local, torna-se uma narrativa com força própria, como a poesia de Pablo Neruda que o carteiro usa para conquistar a sua amada (no filme Il Postino, com Marco Troisi): “Porque usas a minha poesia? Porque a tua poesia agora é poesia de todos”.

Uma comunidade religiosa missionária, evangeliza antes de mais com a maneira como vive concretamente a sua consagração. Torna-se um ‘livro que perde a paternidade do autor e ganha a paternidade do leitor’. A sua ‘narrativa vivente’ convida a novos participantes. Eles/elas, levarão a nossa história a situações e realizações que nós hoje nem podemos sequer vislumbrar.

Para podermos caminhar na direção certa e ajudar a criar novos caminhos de missão na Igreja local, precisamos nós mesmos de aprender a ‘Olhar para longe, para manter a rota certa’. “Quem olha só para o bico do arado, entorta o rego”.

Seremos uma presença preciosa na Igreja local, na medida em que soubermos viver e testemunhar localmente a missão que a Igreja é chamada a construir no mundo inteiro. Papa Francisco insiste na necessidade de sermos: ‘Missionários com Espírito’: capazes de viver aqui e agora o que o Espírito está a indicar a toda a Igreja.

Alguns textos para aprofundar a reflexão:

A conversão pastoral da comunidade paroquial a serviço da missão evangelizadora da Igreja

Congregação para o Clero, 29/06/2020. Igreja local, em paróquias: realidade muito flexível al longo da história.

“Temos, porém, de reconhecer que o apelo à revisão e renovação das paróquias ainda não deu suficientemente fruto, tornando-as ainda mais próximas das pessoas, sendo âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-as completamente para a missão» (EG 28). «Através de todas as suas atividades, a paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização» (EG 28).

“A comunidade paroquial é o contexto humano onde se atua a missão evangelizadora da Igreja, celebram-se os sacramentos e experimenta-se a caridade, num dinamismo missionário que … se torna critério de verificação da sua autenticidade.” (Conv Past, 19)

“… É necessário individualizar prospetivas que permitam de renovar as estruturas paroquiais “tradicionais” em chave missionária. É este o coração da desejada conversão pastoral.” (Conv Past, 20)

A paróquia é “comunidade e comunidades” (EG 28).

Colaboração em comunhão com todas as ouras forças

«O Santo Povo fiel de Deus é ungido com a graça do Espírito Santo; portanto, na hora de refletir, pensar, avaliar, discernir, devemos ter muito cuidado com essa unção. Cada vez que, como Igreja, como pastores, como consagrados esquecemo-nos esta certeza erramos a estrada. Cada vez que queremos suplantar, silenciar, aniquilar, ignorar ou reduzir o Povo de Deus em sua totalidade e em suas diferenças a pequenas elites, construímos comunidades, planos pastorais, discursos teológicos, espiritualidade e estruturas sem raízes, sem história, sem rosto, sem memória, sem corpo, de fato, sem vida. No momento em que nos erradicamos da vida do Povo de Deus, caímos na desolação e pervertemos a natureza da Igreja» (FranciscoCarta ao Povo de Deus que peregrina no Chile (31 de maio de 2018).

A presença dos consagrados na vida paroquial

Não é uma realidade externa ou independente da vida da Igreja local, mas constitui um modo peculiar, assinalado pelo radicalismo evangélico, de ser presente no seu interior, com os seus dons específicos” (Conv Past. 83).

“A contribuição que os consagrados podem trazer à missão evangelizadora da comunidade paroquial deriva em primeiro lugar do seu “ser”, isto é, do testemunho de um radical seguimento de Cristo mediante a profissão dos conselhos evangélicos, e somente posteriormente também o seu “trabalho”, isto é, as atividades realizadas em conformidade ao carisma de cada instituto” (Conv Past 84).

P. Fernando Domingues, mccj
Assembleia provincial dos Missionários Espiritanos, Portugal

 

[1] Cf. Vat II, Lumen gentium, 44 ; João Paulo II, Vita consecrata, 3.

[2] Cf. Philippe Lécrivain, Une manière de vivre. Les religieux aujourd’hui, Bruxelles 2009, p.181.

[3] Cf. Jean-Claude Guy, La vie religieuse mémoire évangélique de l’Eglise, Paris 1987, p.151.

[4] O lavrador que ‘olhe só para o bico do arado’, facilmente entorta o rego; o bom navegador de longo curso orienta-se pelas estrelas.