Segunda-feira, 5 de Agosto de 2019
De norte a sul do continente, do Cairo à Cidade do Cabo, a árvore da vida religiosa desenvolveu raízes profundas em África. A sua presença, encarnada na sociedade e ligada às comunidades católicas locais, está directamente relacionada com a transformação social por meio da educação, a saúde, o desenvolvimento ou o crescimento da consciência cívica. Na foto: P. Fernando Galarza e P. Louis Okot, no Sudão do Sul.
Nenhum continente em todo o planeta sofreu mudanças tão rápidas e significativas como as vividas pelo continente africano. Ao longo do século xx, estas sucederam-se a um ritmo implacável, afectando de diversas maneiras todos os sectores sociais, assim como todos os grupos etários. Que forças estão por detrás destas mudanças? Quem acompanhou essas tendências emergentes? Embora seja impossível identificá-las a todas, é certo que a vida religiosa foi uma fonte de inspiração, porventura a mais importante, dessas mudanças sociais que tiveram, e têm, como cenário o continente africano.
Um caminho obrigatório
Os missionários são insistentes quanto à necessidade de uma transformação social. Contudo, a realidade, amiúde, apresenta uma imagem bastante crua das condições de vida de até três quartas partes da humanidade. A qualidade de vida humana de milhões de pessoas vê-se ameaçada por muitos factores, com realce para o contínuo empobrecimento de grandes massas da população. Esta situação é o resultado de complexos sistemas sociais, financeiros e culturais que eliminam tudo o que parece improdutivo.
Sabemos, por exemplo, que milhões de pessoas em África vivem abaixo do limiar da pobreza. E, ao mesmo tempo que temos essa informação, somos conscientes de que esse eufemismo explicita a falta dos meios essenciais para que todas essas pessoas possam ter uma vida digna.
Quando as pessoas não têm segurança alimentar, água potável, cuidados médicos, um padrão educativo aceitável, um ambiente não degradado ambientalmente; quando a vida não se pode desenvolver como um dom de Deus, em comunhão com todos os seres criados, experimentam-se então a ameaça e a debilidade. O mesmo se pode dizer quando se pisam os direitos humanos, quando se reprime a liberdade religiosa, ou quando os fundamentalismos de qualquer tipo ameaçam o normal desenvolvimento dos ministérios pastorais e o trabalho dos agentes da mudança social. Se todos estes factores estão presentes, não pode haver vida em abundância para que todos a compartam. Aonde podemos recorrer para obter transformações radicais, e não estéticas, que se põem em prática e não se demorem ou neguem? A resposta a esta pergunta deve dar-se no lapso de tempo equivalente a uma geração, e não esperar vê-lo cumprido dentro de um século.
O magistério pontifício de Francisco é inequívoco a este respeito. De facto, apressa a esta urgência o vincular, cada vez com maior clareza, a conversão pessoal e a mudança social. Na Evangelii gaudium, quando se refere à dimensão social da evangelização, o papa sublinha esta característica no anúncio do Evangelho, «para alentar todos os cristãos a manifestá-la sempre nas suas palavras, atitudes e acções».
Estas palavras fazem eco das pronunciadas por Paulo VI e os bispos participantes no Sínodo para a Justiça no mundo, celebrado em 1971: «A acção a favor da justiça e a participação na transformação do mundo aparece-nos completamente como a dimensão constitutiva da pregação do Evangelho ou, por outras palavras, da missão da Igreja pela rendição da raça humana e a sua libertação de cada situação opressiva.»
Na encíclica missionária Redemptoris missio, de 1990, João Paulo II insistiu na acção a favor do «desenvolvimento integral e a libertação de todas as formas de opressão». Quatro anos mais tarde, o Sínodo dos Bispos sobre a Vida Consagrada aprofundou a mesma mensagem.
Uma dimensão social
No passado, a Igreja insistiu na conversão pessoal, num enfoque bastante individualista da transformação que sublinhava a dimensão singular da relação do indivíduo com Deus. Agora sabemos que isto não é suficiente, já que este vínculo não pode produzir os novos céus e a nova terra de que fala o Apocalipse. De facto, o reino de Deus é um banquete preparado para ser celebrado e partilhado juntos. Nos últimos duzentos anos, com o desenvolvimento da doutrina social da Igreja, a dimensão social da conversão ocupou um lugar central.
Na actualidade, a influência pessoal e social da mudança foi elaborada amplamente pelos papas e pelas conferências episcopais. Um exemplo significativo são as campanhas empreendidas em muitas Igrejas locais em África. Este ano, no Quénia, a Comissão Católica de Justiça e Paz escolheu o tema «Unir, curar e construir a nossa nação», já que entendem que não é possível experimentar uma salvação plena de forma individual, senão que sempre há-de ser em comunhão profunda com os demais, e por meio de um claro compromisso social.
O mesmo testemunho pessoal é um claro indicador na vida dos homens e mulheres consagrados. No contexto africano, isto está muito marcado pela crença de que os votos de pobreza, a castidade e a obediência não são muros que separam, mas pontes que põem em contacto com aqueles com os quais partilham a vida.
De facto, as Escrituras sublinham que o que realmente agrada a Deus não é o sacrifício, mas sim as acções que defendem a justiça para todos. O profeta Isaías tinha imaginado tudo isto séculos antes de Jesus: «Não é acaso o jejum partilhar o teu pão com o esfomeado e dar refúgio aos pobres sem-abrigo, vestir ao nu e não deixar de lado os teus semelhantes?»
A resposta à pergunta anterior poderia gerar um furacão de discussões, mas o Evangelho é claro. Uma rápida olhadela à apresentação pessoal de Jesus na sinagoga de Nazaré, tal como se apresenta no Evangelho de Lucas, será mais que suficiente: «“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu. Enviou-me a evangelizar os pobres, a proclamar aos cativos a liberdade, e aos cegos a vista; a pôr em liberdade os oprimidos; a proclamar o ano de graça do Senhor”. E, enrolando o rolo e devolvendo-o ao que o ajudava, sentou-se. Toda a sinagoga tinha os olhos cravados nele. E Ele começou a dizer-lhes: “Hoje cumpriu-se esta escritura que acabais de ouvir”». Isto é um manifesto libertador. Jesus vê-se a si mesmo na tradição profética e percebe o seu ministério como a actualização das promessas que Deus fizera aos pobres e oprimidos de todos os tempos.
A novidade provocada por Jesus enriquece e transforma a religião judaica tradicional, ao vincular de maneira clara e enérgica o amor de Deus e o amor do próximo. De uma maneira particular, isto ocorre através do cuidado aos mais vulneráveis dentre os pobres, ou seja, viúvas, órfãos…
Regeneração e mudança
No caso concreto de África, o fundador dos Missionários Combonianos, Daniel Comboni, viu com antecipação profética a necessidade de que a contribuição da vida religiosa fosse favorecer a evangelização no continente não se actualizasse por meio de um estilo ascético – ainda bastante comum na Europa em meados do século xix. Pelo contrário, as religiosas e os religiosos deviam ser vistos como canais concretos, através dos quais as dimensões apostólicas e sociais dos conselhos evangélicos deviam ser evidentes. Ao atender aqueles que lhes eram confiados e capacitar a quem eram enviados, a Boa Nova de Jesus podia ser bem-vinda e partilhada.
Impressionado pela sua experiência durante a primeira viagem missionária ao coração de África, Comboni viu que a difusão do Evangelho se levava a cabo com grande esforço por ministros varões, os quais, devido aos costumes e à cultura, não podiam entrar no mundo das mulheres, as crianças, a educação ou a saúde. Também entendeu que não era suficiente pregar a Palavra de Deus se esta mesma mensagem não se tornasse concreta por meio de uma atenção visível, no bem-estar, a libertação e a capacitação das pessoas.
A religião incluiria também a transformação social no que respeitava às pragas sociais infligidas aos povos africanos daqueles tempos. Comboni, ao longo do rio Nilo, assim como nas terras do interior, viu o trauma da escravatura e os efeitos trágicos e perturbadores que causava nos indivíduos e nas suas comunidades.
O fundador dos Missionários Combonianos também entendeu que a educação tinha uma importância vital para o êxito dos esforços missionários. Em 1867, quando chegou ao Cairo (Egipto) com o primeiro grupo de leigas africanas que tinham recebido formação para o seu ministério no Instituto Don Mazza de Verona, abriu duas escolas: uma para meninos e outra para meninas. Assim começava a assentar as bases do que havia escrito no Plano para a Regeneração de África.
A vida religiosa africana
Nas duas assembleias do Sínodo dos Bispos para África, celebradas em Roma em 1994 e em 2009, sobressai a ideia de que a vida religiosa no continente deve orientar-se para a fraternidade entre membros de diferentes origens e comunidades. Desta maneira, superam-se os laços gerados pela solidariedade comunitária tradicional e melhora-se a comunhão para toda a sociedade.
Muitas congregações contemplativas enriquecem o solo africano com a vitalidade da sua vida. No nosso mundo globalizado, onde o poder, a posse e o prestígio são os protagonistas, o alegre testemunho de mulheres e homens religiosos confirma a experiência positiva e as ricas relações que provêm de uma vida vivida em presença do mistério de Deus.
As comunidades religiosas em África estão comprometidas em promover e alcançar a reconciliação entre os grupos que sofrem tensões sociais e incertezas, em muitas ocasiões durante longos períodos de tempo. Há muitos campos de refugiados internos, em várias nações africanas, onde algumas comunidades religiosas acompanham homens e mulheres de futuro incerto.
A opção pelos pobres obriga muitas congregações a saírem das suas zonas de conforto, derivadas de um ministério mais paroquial e dominado pelos homens. Hospitais, escolas e laboratórios; ou centros onde pessoas deficientes estão acompanhadas por religiosos e religiosas são algumas das áreas onde religiosos e religiosas africanos vivem a sua vida ministerial diária, no meio daquelas comunidades para as quais foram enviados.
Como em todas as partes, também em África existem diferenças de critério e de acção entre as congregações religiosas e os bispos das dioceses nas quais se estabelecem as suas comunidades. Sabe-se que, com frequência, os bispos querem controlar na sua Igreja local o trabalho de religiosas e religiosos. A especificidade do apostolado que estas comunidades podem oferecer onde estão presentes, juntamente com a disponibilidade para servir dentro de uma Igreja local, são factores importantes que determinam a singularidade do carisma religioso.
São muitas as ordens religiosas africanas que, juntamente com congregações missionárias internacionais, abordam a complexidade eclesial do nosso tempo unindo-se ao trabalho apostólico conjunto por meio de projectos intercongregacionais e inter-religiosos. Um exemplo destacado é a iniciativa Solidariedade com o Sudão do Sul, surgida quando a Conferência de Bispos Católicos do Sudão convidou a União Internacional de Superioras-Gerais e a União de Superiores-Gerais a enviar uma delegação que avaliasse as necessidades educativas, sanitárias e pastorais do país, depois de muitos anos de guerra. Com pessoal, apoio financeiro, talentos, habilidades, energias e carismas, várias congregações uniram-se para enfrentar a imensa necessidade de reconstrução, regeneração e transformação da sociedade do Sudão do Sul. Hoje, 31 religiosos e três voluntários leigos – de 18 países e 19 congregações – vivem em comunidades de Solidariedade. Em Yambio e Wau, trabalham na formação; em Rimenze, a atenção centra-se em programas pastorais e agrícolas, enquanto em Juba funciona o centro de administração e coordenação pastoral. As sete dioceses do Sudão do Sul beneficiam dos frutos produzidos pela árvore que dá seiva à vida religiosa em África.
«Ex Africa semper aliquid novi» («de África sempre vem algo novo»), escreveu Plínio, o Velho, na sua Historia Naturalis. Os homens e mulheres consagrados ocupam um lugar importante nesta grande novidade do século xxi. A transformação social de que fazem parte deve-lhes um agradecimento.
P. Francesco Pierli, missionário comboniano.
Fundador do Social Ministry Institute em Nairobi (Quénia)
Revista Além-Mar, Julho 2019