Quarta-feira, 23 de Janeiro de 2019
O padre Feliz da Costa Martins, missionário comboniano português, que conta cerca de 25 anos de presença no Sudão, chegou a Roma, ontem, para se juntar às duas dezenas de confrades que estão a participar no Curso Comboniano de Renovamento (CCR), na Casa Generalícia. O P. Feliz traz no coração a realidade dura que se está a viver naquele país. “Nas ruas de Cartum – conta aos amigos –, deixei multidões de pessoas atrapalhadas, afamadas, cansadas, feridas… e até mortos, sem poderem ser sepultados dignamente.”
“Ma benekhaf”
NÃO TEMOS MEDO
Nas ruas de Cartum, deixei multidões de pessoas atrapalhadas, afamadas, cansadas, feridas… e até mortos, sem poderem ser sepultados dignamente. As demonstrações destes dias nas ruas da capital sudanesa são uma reacção directa contra o progressivo e exorbitante aumento dos preços, e sobretudo dos bens de primeira necessidade, desde há um ano para cá.
Os manifestantes gritavam contra o Presidente da República, Omar el Bachir, e os governadores dos Estados Federais e/ou seus seguidores. Que são muitos. São mais de metade da população do Sudão. Hoje, a gente grita nas ruas, abertamente e sem medo, contra a vida impossível, a fome… À procura de viver.
Pois é, todos a tentarem lutar pelo direito a uma maior humanização das suas vidas. Tudo isto em sintonia com o que celebrámos, retrocedo uns dias no calendário, há menos de um mês. O Natal. Jesus Cristo veio ao mundo mesmo para nos humanizar ao máximo. Como Ele, também, se humanizou. Fez-se ser humano. Humanizou-se no máximo dos máximos. Este acontecimento não foi só poesia de uma noite de frio de Inverno, ou de neve, ou das renas do Pólo Norte, ou do Pai Natal, ou um qualquer conto de fadas. Humanizar é o verdadeiro sentido do Natal, e não outro. Foi isso o que contemplámos na noite de 24 para 25 de Dezembro: a nua e crua humanidade de Jesus, no Presépio de Belém, do Emanuel (Deus connosco).
Voltando à situação que se vive actualmente em Cartum e em quase todas as cidades do país, o governo transformou as demonstrações pacíficas em violência sangrenta. Em pouco mais de quatro semanas, segundo as notícias de hoje, contam-se já mais de 40 mortos, mais de mil prisioneiros, muitos deles jornalistas, e muitos feridos impedidos de receberem tratamento (…) devido a uma multidão de polícias de Segurança que controla, de arma em punho, o acesso ao Hospital de Royal Care, no Bairro de Burri, em Cartum.
Toda esta gente anda à procura de pão, casa, vestuário e de tudo o que é essencial para viver. Esta gente já tinha tentado, muitas vezes e durante vários anos, fazer demonstrações nas ruas, mas perdeu a coragem. Acabaram por desistir. Fugiram. Porque as balas de fogo vivo, que fizeram algumas vítimas, meteram-lhes medo. Recuaram. Diziam: “temos mulher e filhos a quem temos de alimentar”. Mas desde há um mês, todos à uma, perderam o medo. é o que se lê no cartaz que exibem e que a televisão mostrou: “ma benekhaf”, NÃO TEMOS MEDO.
Quem sou eu para profetizar, mas quer-me bem parecer que o que dizem é verdade: “Não temos medo”. Quem teve medo fui eu, estrangeiro, que um dia me encontrei na rua no meio deles porque, por engano nos meus cálculos, atrasei a minha ida para casa. E logo ouvi alguém que me dizia: “vai-te, foge, que tu com essa pele branca de estrangeiro és alvo de primeira classe e, ao mesmo tempo, fazes-nos também ser. Os da Segurança já vêm aí… Escapa, enquanto é tempo”.
E eu escapei. Sim, não só escapei do meio da multidão mas também do Sudão propriamente dito. Tinha a viagem e o bilhete marcado para Roma. Mesmo assim, cheguei atrasado aqui ao Curso Comboniano de Renovamento que já tinha começado no dia 4 deste mês de Janeiro. A desculpa foi aceite pelo director do curso, que foi muito compreensivo, porque já estava a seguir os acontecimentos no Sudão. Além disso, o director do curso sabia que o governo tinha retardado toda a documentação a meu respeito, não me tendo sido dado o visto de saída-reentrada, que já antes do Natal eu tinha solicitado.
Contudo, integrei-me bem no grupo destas duas dezenas de colegas missionários, que vêm de quase todas as partes do mundo, onde os combonianos se encontram a trabalhar. “El hamdu lilhah”, graças a Deus!
De resto, comigo tudo bem. É só pena que tive de deixar o meu trabalho em Nyala, no Darfur. A minha próxima destinação será, daqui a uns meses, à missão de El Obeid. Todavia – quem sabe (?)… nos planos íntimos e reservados de Deus, em Quem eu creio –, talvez será melhor não ter pressa. E fazer como me disse o meu novo bispo sudanês, D. Tombe Trille, da diocese de El Obeid: “nós precisamos cá muito de ti, mas vem só quando puderes, não forces a corda para que não se rompa. Porque a pressa pode estragar tudo”.
Sim, vamos mais devagar, tendo em conta o que está a suceder no Sudão.
P. Feliz da Costa Martins