Os sins e os nãos para a fusão dos combonianos de Portugal e Espanha

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Quinta-feira, 15 de Dezembro de 2016
O P. Manuel Augusto Lopes Ferreira, comboniano português, fez uma pesquisa histórica sobre a união jurídica e canónica das presenças combonianas em Portugal e Espanha, de 1964 a 1969. A 6 de Outubro de 1969, a direcção-geral do Instituto comboniano erigia de novo a província de Portugal, passando a existir duas províncias autónomas. Hoje, pensa-se, de novo, numa eventual reunificação. Para ajudar à reflexão sobre as vantagens e as desvantagens de uma nova fusão de ambas as duas províncias, o missionário realizou esta pesquisa. No final deste “caso de estudo”, como lhe chama o autor, o P. Manuel Augusto não se manteve neutro. À pergunta se se deve repetir a experiência da união, conclui: “À luz da análise que fizemos creio que não.” [Na foto: encontro entre combonianos portugueses e espanhóis, em 2014, em Fátima; o P. Manuel Augusto é o primeiro à esquerda, de pé].

 

Encontro entre combonianos
portugueses e espanhóis,
em 2012, em Santarém.

 

União
de Portugal e Espanha
(1964-1969):
uma experiência,
um "study-case"


Seguirei, na minha exposição, um esquema que contempla seis partes; primeiro, veremos a história desta união; segundo veremos o impacto que ela tem (o meu ponto de análise é do lado de Portugal); terceiro, procuraremos perceber as razões desse impacto (isto é, como e porque funciona); quarto, veremos como termina e como e porque não funciona; quinto, procuraremos tirar algumas lições desta experiência, nos seus aspectos positivos e negativos; e sexto, a modo de conclusão, procuraremos ver que desafios ela nos deixa.

Gostaria de dizer uma palavra sobre o título que adopto. Falo da união jurídica e canónica das presenças combonianas em Portugal e Espanha, de 1964 a 1969, como de uma “experiência” e de um “caso de estudo”. O termo “uma experiência” tomo-o emprestado, como veremos, da boca do próprio superior geral que decidiu a união. O termo “caso de estudo” parece-me o mais adequado, do ponto de vista do método, para uma abordagem desta fase da nossa história, abordagem que deve ajudar-nos a olhar para esta experiência como momento de aprendizagem, já que fazemos uma experiência para testar, para aprender pela via do fazer, para perceber o que convém ou não convém fazer.

1. Comecemos, então, pela história da união

Em Agosto de 1964, o novo superior geral, P.e Gaetano Briani, com os seus conselheiros gerais, eleitos no capítulo geral de 1963, decidem a unificação da região de Portugal a Espanha, sob a responsabilidade do representante do superior geral em Espanha, o P.e Henrique Faré, com o novo nome de «Região Ibérica».

Em Portugal, não há registo de nenhuma discussão prévia que prepare esta decisão. Creio que em Espanha também não haja.

(Entre parêntesis recordo que a presença comboniana em Portugal inicia-se em 1947 e em Espanha em 1954. A obra comboniana em Portugal é dirigida por um representante do superior geral até 1957, e é erigida Região nesse ano, como reconhecimento pelos 10 anos da fundação. O Pe António Todesco toma essa decisão que comunica por carta, a 27 Julho, ao P.e Ernesto Calderola, o primeiro regional).

O diário da região portuguesa, regista visitas significativas, tanto de um lado como doutro. Ao irem e virem de Itália, de comboio, alguns dos combonianos que estão em Portugal interrompem a viagem em Burgos para visitar os primeiros combonianos MCCJ a viverem em Espanha, a estudar teologia em Burgos e a viverem no Instituto do IEME.

Combonianos que estão trabalhar em Espanha participam na inauguração do seminário de Viseu, em 1955.

Desde esta data, há registo de contactos e intercâmbio de informação e experiências. Em Novembro de 1961, por exemplo, o P.e Olindo Spagnolo visita a Maia e orienta uma troca de impressões e reflexão sobre o trabalho de animação missionária e promoção vocacional que está a fazer nos seminários de Espanha. O diário da região regista assim o encontro: «o padre anima-nos a trabalhar neste fecundo campo. Infelizmente aqui, nas dioceses, o clero é escasso e há menos possibilidade de pesca nos seminários do que na Espanha”. E a 15 de Janeiro de 1962 é a vez do P.e Henrique Faré, que visita Viseu e «fica encantado com o nosso presépio e nos convida a fazê-lo, no próximo Natal, em Madrid».

Mas nestas visitas e contactos, a hipótese da reunião jurídica das duas presenças combonianas nunca é mencionada.

Na correspondência havida entre o P.e Ernesto Calderola e o P.e Henrique Faré, trocam-se ideias sobretudo acerca da falta de pessoal e da possível colaboração a nível de retiros conjuntos, de envio de portugueses para o noviciado de Espanha, então a funcionar em Corella, Navarra. Numa dessas cartas, de 17 de Agosto de 1962, o P.e Ernesto Calderola pede para se mandar a Corella um noviço português e o P.e Henrique Faré responde-lhe: «Mande o noviço do segundo ano e os que tiver a seguir».

E acrescenta um parágrafo, onde é mencionada pela primeira vez a ideia da união: «Por aquilo que me diz acerca de um possível noviciado único para a Espanha e para Portugal, parece-me que o pensamento do Padre Geral seja mais radical... o de fazer uma região única. A mim parece-se que haja vários inconvenientes nisso; de todos os modos videant consules. Para o noviciado penso que as dificuldades não seriam tão grandes, especialmente se se realizasse um intercâmbio (de pessoal missionário) entre as duas nações».

Razões para unir a região de Portugal e a delegação de Espanha não se conhecem nem são discutidas e é por isso que a decisão causa surpresa, nos dois lados. Ela é tomada, talvez, pelo desejo de coordenar melhor as actividades e de estender a Portugal a inovação da liderança do P.e Henrique Faré, particularmente no que se refere à animação missionária. Certamente, a decisão é tomada por vontade expressa do superior geral, P.e Gaetano Briani, que deseja com ela, como ele próprio se justificará, «fazer uma experiência».

A decisão é tomada na reunião do conselho geral de 14 de Julho de 1964, nos seguintes termos e sem adiantar razões: «Decide-se a supressão da Região de Portugal e de erigir a Região Ibérica, correspondente a Portugal e Espanha. O P.e Henrique Faré é nomeado Superior Regional e os Padres Severino Peano e Efrem Angelini são nomeados Conselheiros. O P.e Ernesto Calderola é nomeado Superior Regional de Moçambique».

Se estivéssemos presentes nesta reunião do conselho geral, teríamos ouvido nas intervenções dos assistentes gerais, os ecos das discussões capitulares (do capítulo de 1963), tanto na sala como, sobretudo, nos corredores. O P.e Henrique Faré chega ao capítulo de 1963 com os louros da sua liderança no México e na Espanha; há quem pense nele para superior geral, mas a verdade é que ele acaba por não ser eleito. Os promotores da sua candidatura vêem na possibilidade da união de Espanha e Portugal uma maneira de reconhecer a sua liderança e de aumentar a sua área de influência a nível de instituto.

Na carta que endereça ao P.e Henrique Faré, com data de 17 de Julho de 1964, para lhe confiar o encargo e explicar a missão que lhe é atribuída, o P.e Gaetano Briani faz menção deste falar entre capitulares e escreve: «Agora uma palavra sobre a Região Ibérica. A Consulta pensou conveniente unir as casas de Espanha e Portugal numa só região. É uma experiência que se quer fazer para realizar o que foi manifestado por muitos no último capítulo, confiando a si o bom êxito desta experiência. Em Portugal haverá um superior regional fictício, para que figure tal diante do governo: o P.e Ramiro Loureiro da Cruz. Mas não tem qualquer autoridade na congregação. Para seus conselheiros, providenciou-se da seguinte maneira: o primeiro conselheiro será o P.e Severino Peano, para Portugal; o segundo conselheiro será o P.e Efrem Angelini, para Espanha. Recomendo-lhe, apesar de saber não ser necessário fazê-lo, equanimidade entre as duas nações. Cada uma deverá desenvolver-se com os seus próprios meios, sem detrimento para a outra parte. Peço-lhe que escolha um ecónomo regional. O primeiro conselheiro em Portugal terá uma certa autonomia para dispor do pessoal, em casos urgentes. Reúnam-se com frequência, para ver como se pode providenciar à Região da melhor maneira possível».

Voltando á decisão, em Viseu e nas outras comunidades do instituto em Portugal, a notícia cai como uma bomba. É uma surpresa, uma decisão não esperada cuja oportunidade se discute abertamente. Os primeiros a reagir, por escrito, à decisão são os padres Ernesto Calderola e Severino Peano.

O primeiro escreve, assim, ao superior geral, em carta de 26 de Julho de 1964: «A questão que desejo tratar com esta minha é a da união da Região de Portugal com a Espanha, união que ninguém aqui esperava e muito menos desejava. Faltaria à minha obrigação se ficasse calado e se deixasse passar o assunto sem mais, mesmo com a atenuante de que eu já não tenho a ver com o mesmo. Depois de uma reflexão séria, diante do Senhor, escrevo-lhe a pedir que reveja essa posição que, se não agrada aos confrades de Espanha, é um autêntico duche frio para os combonianos que estão aqui em Portugal, com o consequente sentimento de desencorajamento e de humilhação, tanto para os portugueses como para os italianos. Todos, sem excepção, estão dispostos a obedecer, como sabemos, mas com muita pena pelo que se lhes pretende impor».

Na sua longa carta, o P.e Ernesto Calderola passa em revista as eventuais razões a favor e contra e confessa que «para quem conhece a situação, as razões contra são mais que decisivas».

O P.e Severino Peano escreve também uma carta, ainda mais longa, de duas páginas inteiras, ao superior geral a 28 de Julho de 1964, desde Paço de Arcos onde se encontra. Nela apela-se ao directório dos combonianos que convida «à sinceridade para com os Superiores», evoca os seus 16 anos de trabalho missionário em Portugal, os seus cabelos já cinzentos, e passa em revista as razões contra a decisão, que enumera detalhadamente em oito pontos:

«(A decisão) de criar a Região Ibérica foi para mim um autêntico trovão em céu sereno. Já passaram alguns dias e ainda não consegui refazer-me do choque recebido e conformar-me com a decisão tomada pela Direcção Geral, sem prévia consulta, pelo que me consta, do Regional de Portugal e do representante do Superior Geral em Espanha. Pessoalmente, parece-me uma decisão contrária ao verdadeiro bem da Congregação e ao desenvolvimento da mesma em Espanha e em Portugal. Não consigo ver quais as vantagens que possam ter motivado tal decisão. Poupar no pessoal? (...) Vantagens económicas? (...).  A decisão é uma regressão para a Região de Portugal e parece-me ferir tanto os confrades de língua portuguesa como os confrades de língua italiana que trabalharam em Portugal desde o início e com tanto entusiasmo e sacrifício. Parece-me que nenhum dos confrades recebeu a notícia com prazer, muito menos com entusiasmo».

Depois de apresentar as dificuldades práticas, para funcionar segundo o esquema proposto pelo superior geral para a nova região, por não terem suporte nas regras vigentes no instituto, o P.e Severino Peano conclui: «Como se pode começar a trabalhar sem ter directivas claras baseadas sobre as regras do instituto? Pessoalmente devo confessar que uma grave alternativa se coloca à minha consciência: por uma parte, não quereria subtrair-me à vontade de Deus, apesar dela se me figurar difícil e dura; por outra parte, porém, posso aventurar-me numa ‘experiência’ do género? Se pensasse oportuno comunicar-me a ordem ‘em virtude da santa obediência’ eu agradecer-lhe-ia porque isso tranquilizaria muito e minha consciência».

O que ajuda a sair do impasse psicológico é o perfil do P.e Henrique Faré, homem dinâmico, cujas ideias pioneiras sobre a animação missionária cativam os que o conhecem. O P.e Henrique Faré ficaria com o P.e Ramiro Loureiro como representante oficial do instituto comboniano perante as autoridades portuguesas. Este arranjo, e correcção da medida tomada, só é oficializado mais tarde, na reunião do conselho geral de 18 de Fevereiro de 1966, que lembra uma decisão tomada na reunião do conselho geral de 16 de Dezembro de 1963, nos seguintes termos: «Confirma-se a decisão de que o P.e Ramiro seja apresentado como representante legal da congregação em Portugal, come se decidiu na consulta de 16 de Dezembro de 1963». Desta reunião, porém, não existe acta nos Arquivos da Congregação e, segundo as actas existentes, a reunião do conselho geral de Dezembro de 1963 teve lugar no dia 9 e este assunto não consta da acta.

Na sua História dos Combonianos em Espanha (na pág. 64), o P.e Juan González Nuñez escreve que «se compreende que a reacção em Portugal fosse mais forte que em Espanha.» Portugal era uma região «sete anos mais antiga» e que «tinha funcionado até esse momento de maneira autónoma. Se para a Espanha a decisão de criar a Região Ibérica podia considerar-se um passo em frente, para Portugal era mais bem um passo para trás».

O primeiro a pressentir as dificuldades da tarefa que lhe confiam é o próprio P.e Henrique Faré que, depois de uma semana de reflexão, responde assim ao superior geral: «A sua notável carta do dia 17 do corrente mês pareceu-me tão extraordinária como inesperada. Estava eu muito longe de pensar que se tornasse uma realidade a Região Ibérica e muito menos que fosse eu precisamente aquele a quem tocasse “reaquecer a sopa.” Se me tivesse sido pedido um parecer, eu teria apresentado muitas dificuldades. Agora que a vontade de Deus se manifestou tão claramente na decisão dos superiores não me resta que dizer o meu assim seja e confiar em Deus para realizar da melhor maneira possível o que os superiores querem alcançar com esta decisão. Apenas me seja possível, farei uma viagem a Portugal».

As dificuldades em aceitar a decisão que se manifestam em Portugal, chegam expressas em cartas ao superior geral com cópia ao próprio P.e Henrique Faré, que delas faz menção ao P.e Gaetano Briani, na carta apenas citada: «Os padres Calderola e Peano mandaram-me cópia da carta que a si dirigiram, expondo as dificuldades referentes à decisão de unir Espanha e Portugal numa única Região, dificuldades que eu mesmo lhe teria manifestado se tivesse sido consultado; mas que agora, diante de uma decisão já tomada, considero simplesmente como obstáculos a superar para cumprir, do melhor modo possível, a obediência que me foi imposta».

Confrontado com estas reacções e dificuldades, o superior geral escreve, a 4 de Agosto de 1964 ao P.e Henrique Faré, aconselhando-o «a usar de muita táctica com os confrades de Portugal. A decisão de unir as duas nações numa só Região não foi bem vista. Temem dificuldades e impedimentos a desenvolver-se como desejariam».

 Pelo seu lado, à frente da região Ibérica, o P.e Henrique Faré não perde tempo. A 25 de Julho de 1964 escreve uma carta aos combonianos que estão em Portugal na qual faz um resumo das decisões do superior geral e do seu conselho e confessa: «A notícia chegou-me tão desconcertante como inesperada e imprevista. Por isso, pondo de lado razões a favor ou desfavor, não me resta que ver na decisão a expressão clara da vontade de Deus, que procurarei cumprir da melhor maneira possível». E acrescenta: «Estou certo que, como bons religiosos, fareis o mesmo, animados pelo espírito de fé, que nos faz ver nas decisões dos superiores a vontade de Deus, que tudo dispõe para a Sua maior glória e para o nosso maior bem. A união das duas regiões é uma experiência que os superiores querem fazer, e o tempo e a nossa boa vontade dirão qual será o êxito».

2. O impacto da união na obra comboniana em Portugal

Além de escrever, o P.e Henrique Faré procura de imediato fazer-se presente nas comunidades em Portugal, para conhecer pessoalmente a situação das mesmas. Dos cinco meses que o separam do fim do ano de 1964, passa quase dois em Portugal para conhecer as comunidades e os ritmos da obra comboniana no país, que vai precisar de imediato da sua presença e acção (por causa da supressão da revista Além-Mar em 1965).

Não deixa terminar o ano sem se reunir com os superiores das comunidades, a 3 de Dezembro de 1964, para fazerem a revisão da situação em Portugal e avançarem com programas para o futuro. Estes programas incluem uma revisão do directório dos estudos (a Ratio Studiorum) dos seminários combonianos, entretanto elaborado pelos padres Gino Centis e Alberto Cunha, e uma nova estratégia para os seminários, que viria a marcar a vida da obra comboniana durante toda a década de sessenta.

No que se refere à animação missionária, o P.e Henrique Faré também quer marcar a diferença e renovar dinamismos e métodos. A 3 de Dezembro de 1964 promove também uma reunião, em Viseu, entre superiores e animadores missionários para combinarem estratégias para o futuro imediato. Nesta reunião é aprofundado o sentido e são explicadas as metodologias dos dias missionários e das demais formas de testemunho missionário a promover nas paróquias; é reafirmada a necessidade de um centro para a animação missionária nos meios de comunicação social; é apresentada a fórmula para se proceder com a renovação da revista Além-Mar («eminentemente missionária, formativa e vocacional») e relançar a sua difusão; projecta-se a actividade da editorial, agendando novos livros para publicação, a começar com a vida de Daniel Comboni; reorganiza-se a promoção vocacional nos seminários diocesanos de Portugal e o trabalho com as colaboradoras missionárias nas paróquias.

Os pontos mais decisivos e as consequências concretas da união e da estratégia do P.e Henrique Faré para Portugal ficam assim delineados e são os seguintes:

-mudar a revista Além-Mar de Paço de Arcos para Lisboa, estabelecer na capital uma comunidade dedicada à animação missionária (25 de Junho de 1966) e lançar a revista Audácia (Novembro de 1966);

-aumentar o seminário de Vila Nova de Famalicão, que já está a funcionar como seminário menor, aumentando a sua capacidade para 140 seminaristas (as obras são levadas a cabo durante o ano de 1967-1968, ano em que o seminário fica encerrado);

-alargar o seminário da Maia, que passará a funcionar como seminário médio (as obras começam em Fevereiro de 1967, com a construção da ala norte).

Esta estratégia Para Portugal contempla dois seminários menores a alimentar um seminário médio, que por sua vez alimenta o noviciado único a funcionar em Moncada.

Para além desta estratégia que afecta a obra comboniana em Portugal, sobretudo no que diz respeito á formação e à animação missionária, a união cria um contexto de intercâmbio entre combonianos que estão em Portugal e Espanha.

Este intercâmbio verifica-se a dois níveis: primeiro, ao nível do noviciado, em Moncada, onde noviços portugueses e espanhóis convivem e são iniciados à vida missionária comboniana; segundo, nos seminários menores em Portugal, onde prefeitos de disciplina portugueses e espanhóis se envolvem no processo formativo dos candidatos.

A outros níveis da obra comboniana, em Portugal e na Espanha (como animação missionária, formação, economia...) não há intercâmbio de pessoal. O único caso que a história regista de 1964 a 1969, é o do Pe Isaías da Rocha Pereira, que acompanha o primeiro grupo de noviços portugueses para Moncada, em 1967, e assume a economia da comunidade e a animação missionária no Levante e em Palma de Mallorca até 1970, ano em que sofre um esgotamento e regressa a Portugal.

A experiência de interacção e camaradagem dos noviços e escolásticos portugueses e espanhóis, no noviciado de Moncada e nos seminários em Portugal, é positiva para os dois lados.

Os portugueses que passam por Moncada, tanto os que perseveram como os que deixam o instituto, guardam uma recordação muito positiva dessa etapa formativa. Há também dificuldades no convívio: os portugueses sentem as diferenças, de língua e cultura, a diversidade das várias levas de candidatos: os grupos de espanhóis são mais heterogéneos, enquanto os portugueses têm atrás de si o processo unificador da experiência de anos de vida nos seminários combonianos. Mas isso não impede a convivência sadia nem a riqueza do encontro. O trabalho manual é abundante, exige espírito de sacrifício e cria laços de camaradagem. A amizade, própria da idade e do espírito comboniano, cresce e consolida-se para a vida missionária, numa forte mística comum. Entre portugueses e espanhóis formam-se amizades que duram uma vida inteira, tanto dentro do instituo para os que ficam, como fora para os que saem dos dois lados.

Cresce também um comum apreço pelos superiores e formadores, a começar pelo P.e Efrem Angelini, o primeiro padre mestre, e pelo P.e João Baptista Bressani, que se lhe segue; pelos padres Pedro Gasparotto e Vittorino Girardi que ensinam filosofia e ajudam os candidatos a seguirem a vida da igreja no pós-concílio; pelo P.e Enzo Canonici que os introduz à liturgia e a uma vivência intensa dos tempos litúrgicos. Os candidatos conseguem distinguir a generosidade e dedicação dos educadores dos constrangimentos do tempo e das circunstâncias que limitam a sua acção educadora.

Do lado dos combonianos espanhóis, há igualmente espírito de abertura e apreço pela presença dos combonianos portugueses, como testemunha o P.e João González Nuñez, num texto que escreve para o P.e Isaías da Rocha, em 1994: «Tenho do noviciado, dos anos em que os portugueses vinham a Moncada fazê-lo, uma recordação muito agradável. O primeiro foi o Alexandre da Rocha Ferreira, que entrou no noviciado no mesmo ano em que eu entrei. No ano seguinte começaram a vir grupos mais numerosos e homogéneos dos seminários menores de Portugal. A esse respeito lembro-me de que comentávamos entre nós espanhóis que eram os portugueses os que davam ao noviciado uma certa consistência. Os candidatos espanhóis vinham quase todos de suas casas e eram muito heterogéneos. (...) A nível dos nossos povos havia certas tensões devidas a mentalidade provinciana e a pouca abertura internacional. Imperava uma como que rivalidade entre vizinhos. Se entre os combonianos isso não contribuiu para agudizar dificuldades foi graça de Deus e deve-se também ao facto de os superiores, sendo italianos, não entrarem na contenda».

A camaradagem entre combonianos portugueses e espanhóis, iniciada em Moncada, continua depois em Portugal com o mesmo entendimento, espírito de sacrifício e generosidade. As novas gerações de prefeitos de disciplina para os seminários combonianos de Viseu, Maia e Vila Nova de Famalicão passam a vir, cada ano de Moncada. São portugueses (como o Claudino Ferreira Gomes, Joaquim Fonseca, Abílio Simães, Ivo do Vale, Feliz da Costa, Manuel Pinheiro de Carvalho, José Carlos Mendes da Costa, Manuel Augusto Ferreira) e espanhóis como João José Tenias, José Delgado, Camilo Guerrero, José Alberdi, Luis Casado, Eugénio Gonzalez, Ramón Eguiluz, José Alonso, Miguel Antolin, Joaquim Sanchez, Alexandre Canales, Carlos Bascarán, Eugénio Arellano, Miguel Angel Sebastian, António Guirao, Juan José Ténias, que deixam os seus nomes ligados à obra comboniana em Portugal e às terras por onde passam. O Carlos Bascarán acaba a jogar futebol no clube da Maia e ajuda os maiatos a conquistarem o campeonato distrital de futebol. Com os outros prefeitos portugueses e com os combonianos italianos, a colaboração de nuestros hermanos é exemplar e cria um ambiente propício à educação dos candidatos que por aqueles anos passam pelos seminários combonianos em Portugal, e à renovação dos métodos educativos que se adivinha para os anos 70.

3. Razões deste impacto positivo

As razões do impacto positivo da união em Portugal, que temos visto até agora, têm a ver fundamentalmente com três factores.

Primeiro, o ambiente juvenil europeu dos anos sessenta, particularmente da segunda metade dos anos 60, com o Maio de 1968 em Paris, e o ambiente de renovação e novidade que se criou com o Vaticano II (1962-1965). Foram anos de grande abertura e sonho da juventude, um ambiente que facilitou o encontro, o compromisso e a dedicação a uma causa comum entre os jovens combonianos portugueses e espanhóis.

Segundo, a liderança carismática do Pe Henrique Faré.

O P.e Henrique Faré é, nos anos sessenta, uma pessoa visionária, generosa com o futuro, com uma forte identidade missionária e um sentido de projecto comum de instituto. A sua personalidade é amável e discreta, mas ao mesmo tempo firme nas decisões, sobretudo na hora de avançar com as iniciativas e escolher as pessoas para as realizar. A sua força ­— o apego ao ideal missionário e ao projecto comum de instituto — torna-o confiante nas suas ideias e insensível às exigências de renovação e mudança, que se afirmam com o andar do tempo e na ressaca do Concílio Vaticano II. Este facto, porém, não impede a quantos o conhecem e com ele trabalham, de reconhecer os seus dotes de líder carismático e inspirador.

Pelo que a Portugal respeita, após cada visita às comunidades, ele escreve uma carta dando conta da mesma, expondo as decisões tomadas e convidando ao envolvimento de cada um, no compromisso do próprio trabalho, na vivência da fé e na entrega à vocação missionária. Foi assim com o fecho do Faleiro como casa de formação, com os aumentos de Maia e de Vila Nova de Famalicão e a abertura da comunidade em Lisboa. As suas recomendações e chamadas de atenção são feitas num contexto apelativo e inspirador dos valores que animam a mística missionária.

Numa das primeiras dessas cartas, a 11 de Agosto de 1965, ele revela o espírito que anima a sua liderança: «Reconhecendo aos estudos a importância que devem ter, faça-se de modo que os candidatos estimem e amem sobretudo o que é essencial na sua vocação; isto é, o espírito religioso, sacerdotal, missionário comboniano. Procure-se, por isso, tanto no foro interno como externo, dar-lhes piedade, calor, abertura, entusiasmo...de modo que sintam que estão num autêntico seminário apostólico e não num simples colégio para estudar. Isto ajudará a sua maior perseverança e êxito».

Terceiro, a disponibilidade de recursos humanos e outros para desenvolver a estratégia pensada. Na década de 60 fazem os votos 8 irmãos missionários e são ordenados 24 sacerdotes missionários combonianos portugueses, 7 dos quais no ano de 1968. Este significativo número de profissões e ordenações sacerdotais durante a década de sessenta permite levar a cabo uma maior localização da obra comboniana no nosso país, de modo particular na formação e na animação missionária. É este investimento das pessoas na animação missionária, com equipes eficientes e jovens em Viseu, na Maia e em Vila Nova de Famalicão, que permite levar a cabo e financiar localmente as obras de aumento dos seminários. 

Estes objectivos conseguidos deixam os combonianos todos satisfeitos, a começar pelo superior regional, o P.e Henrique Faré, que escreve (à mãe a 15 de Julho de 1968, logo após as ordenações em Viseu): «No dia 13 foram ordenados, na Catedral de Viseu, sete sacerdotes missionários combonianos. Foi uma bela festa, que contou com a presença de todas as autoridades religiosas e civis. É a primeira vez que se ordenam tantos combonianos portugueses».

Resumindo, e para concluir as razões do impacto positivo, diríamos que se verificaram contemporaneamente as três condições: um ambiente de renovação eclesial e social juvenil favorável; uma liderança carismática capaz de empolgar os combonianos num projecto; os recursos humanos e económicos necessários.

4. O impacto negativo da união

A unificação das presenças combonianas em Portugal e Espanha, durante seis anos, teve também o seu lado negativo, que não podemos evitar de considerar aqui. Elas explicam o facto de a experiência ter sido sol de pouca dura.

O primeiro limite da experiência foi ter começado torta, tornando-se depois difícil endireitar o que começou torto. Refiro-me ao facto de a decisão ter sido tomada à revelia das pessoas, sem nenhuma reflexão e consultação. Há um problema psicológico, de aceitação da decisão, que fica por resolver e que fica a perturbar o relacionamento entre as pessoas, que vem ao de cima nos momentos de crise e dificuldade (como foi a supressão da revista Além-Mar e o fim do reconhecimento oficial do instituto).

Repare-se que não se trata de um problema de nacionalismo político (dos combonianos portugueses). Os combonianos portugueses que estão em Portugal na altura da união contam-se nos dedos de uma mão (e ainda sobra dedos). A maioria dos opositores e a oposição mais sentida vem dos combonianos italianos (como vimos ao início).

Em segundo lugar, a união traz um retrocesso nos dinamismos de reforma dos métodos educativos que se estavam a ensaiar em Portugal, como a colocação do noviciado numa idade mais adulta, após o sétimo ano do Liceu. A estratégia do P.e Henrique Faré volta a colocar o noviciado, a partir do ano de 1965, numa idade mais jovem, logo após o quinto ano liceal, apostando mais na generosidade, no sentimento e na força do ideal (A Força do Ideal é o título do livro de meditações vocacionais que torna famoso o P.e Henrique Faré na Espanha e em Portugal) dos candidatos do que na sua responsabilização e liberdade adultas.

Em terceiro lugar, durante os seis anos da reunificação verifica-se a falta de um plano de especializações dos combonianos portugueses: a estratégia do P.e Henrique Faré, pelo que diz respeito aos estudos, assenta nos mínimos essenciais, na generosidade e na entrega das pessoas, e não prepara, ao menos do lado português, um plano de especializações mais cuidado, tanto no âmbito da filosofia como da teologia. A necessidade e o desejo de integrar os candidatos portugueses na obra comboniana vem jogar a desfavor de um sério programa de especializações. Manda a verdade dizer que esta é uma limitação que acompanhava a província portuguesa antes da unificação e que continuará a acompanhá-la mesmo depois de 1969.

Em quarto lugar, e à medida que passam os anos, tornam-se evidentes os limites da estratégia de promoção vocacional pensada pelo P.e Henrique Faré, com o acento na promoção feita em colégios católicos e seminários diocesanos.

Esta estratégia sofre um duplo retrocesso.

Os resultados parecem grandes, do ponto de vista numérico, mas são efémeros: muitos são os candidatos que entram, mas muitos são também os candidatos que saem, no próprio noviciado e nas fases posteriores da filosofia e da teologia.

Os próprios promotores lançam uma nuvem de suspeita e um momento de crise (com o abandono dos promotores vocacionais padres José Aranguren e Manuel Toca, em Espanha, e do P.e Humberto Aluigi, em Portugal) sobre o método de trabalho de promoção vocacional.

A expectativa de um crescimento exponencial dos combonianos, sobretudo em Espanha, não se verifica e o número dos combonianos espanhóis de pouco ultrapassa o dos combonianos portugueses, apesar da população da Espanha ser quatro vezes superior à Portuguesa e a vitalidade da igreja católica manifestamente maior.

Em quinto lugar, o facto de não se ter definido o estatuto canónico, as regras para o funcionamento da experiência. Esta questão, levantada, como vimos, pelo P.e Severino Peano na sua carta ao P.e Gaetano Briani, era pertinente. Deixou-se a experiência toda sobre os ombros do P.e Henrique Faré, sem regras para o funcionamento (para a partilha e destinação do pessoal, por exemplo, para a colaboração nos vários campos) e deixando tudo ao seu carisma e à iniciativa. De certo modo, a experiência estava condenada a durar tanto quanto durasse o P.e Henrique Faré, que a geriu à sua imagem e semelhança: no capítulo de 1969 a possibilidade de ele ser eleito superior geral, de se consagrar a sua liderança, esfuma-se definitivamente e o fim da experiência está à vista.

Assim, no último ano da década, a 6 de Outubro de 1969, a direcção-geral do instituto comboniano, saída do capítulo geral especial (que tem lugar em Roma de 16 de Maio a 6 de Dezembro desse ano), erige de novo a província de Portugal.

Este desfecho não é tão inesperado como isso, já que a comissão central que prepara o capítulo, ainda em 1968, «reflecte sobre a fisionomia das regiões e propõe ao capítulo que as mesmas sejam de carácter nacional para melhor assumirem e desempenharem as suas funções» (carta do P.e Ramiro da Cruz, de 10 de Janeiro de 1968).

As actas da reunião do conselho geral registam a decisão: «Na sessão da reunião do conselho geral de 6 de Outubro e 1969, depois de examinar a situação e verificadas as condições necessárias para a constituição das comunidades combonianas de Portugal em província, o conselho geral aprova a constituição e augura que esta sirva para incrementar o crescimento das comunidades da província». O documento oficial que reconstitui Portugal de novo como província comboniana é redigido mais tarde e tem a data de 18 de Dezembro de 1969 e tem as assinaturas do P.e Tarcísio Agostoni, superior geral, dos padres Ottorino Sina, Luigi Penzo, Archimede Fornasari e Robert Bosse, assistentes gerais, bem como do P.e Salvatore Calvia, secretário-geral.

Tanto num lado como noutro, em Portugal como na Espanha, a decisão é vista como natural e previsível. O assunto da união / separação faz parte dos temas discutidos na preparação do capítulo geral de 1969.

Se a decisão da união não fora preparada por nenhuma consulta, a possibilidade da separação é objecto de uma consulta aos combonianos de Espanha e Portugal, feita no contexto da preparação da relação ao capítulo geral. O conselho da Região Ibérica prepara um inquérito, com duas perguntas, enviadas a todos os membros da região: Desejas que Portugal e Espanha constituam duas províncias?; Desejas que continuem a constituir uma só província? Em Portugal, as perguntas foram respondidas individualmente (24 votos a favor da primeira pergunta e 4 a favor da segunda, num total de 31 combonianos que trabalham em Portugal neste ano, 16 portugueses e 15 italianos). Em Espanha, a resposta foi dada por comunidades e foi unânime (todas as comunidades se manifestaram a favor da separação); também votaram a favor os combonianos espanhóis a trabalhar fora de Espanha.

Baseada neste inquérito, a relação da Região Ibérica ao capítulo de 1969 apresenta a separação da Espanha e Portugal como o desfecho mais natural. Os combonianos em Espanha e Portugal não estranham o fim da «experiência», que aos olhos de todos aparece como contra a natureza das situações nos dois países e difícil de sustentar por causa das diferenças culturais, sociais e históricas, das distâncias e das dificuldades de comunicação então existentes.

Se não há registo de consultas antes da união, também não há registo de nenhuma avaliação feita (em reunião ou assembleia) da experiência: tem-se a sensação de que a experiência foi vivida como um parêntesis, felizmente encerrado. A única tentativa de avaliação é feita na relação ao capítulo de 1969 onde se lê: “Reconhece-se, quase unanimemente, que nestes cinco anos a união trouxe algumas vantagens para ambas as partes, como por exemplo: poupança de pessoal, no noviciado e escolasticado comuns; uma boa experiência de convivência internacional; um mais fácil intercâmbio de pessoal, sobretudo nas escolas apostólicas de Portugal.”

“Não obstante estas vantagens,” continua a relação, “crê-se oportuna a divisão das duas nações, pelos seguintes motivos: as duas nações têm situações linguísticas, históricas, religiosas e culturais diferentes; as duas nações encontram-se agora com boas perspectivas de ulteriores fundações e a autonomia favorecerá uma maior desenvolvimento; a divisão parece necessária pelo facto de que cada uma das duas nações espera contar, justamente, com o seu próprio pessoal directivo.”

A relação termina com um voto: “a separação não deveria excluir a possibilidade de seguir intercambiando pessoal e iniciativas de comum interesse entre as duas nações.”

A colaboração entre Portugal e Espanha vai continuar, de facto, ainda por três anos (até ao ano lectivo de 1971-1972), com o envio dos noviços para Moncada e a presença dos prefeitos de disciplina espanhóis nos seminários de Portugal. Mas, nos dois países, tem-se a percepção de que os ventos das mudanças conciliares sopram contra os pressupostos da estratégia concebida pelo P.e Henrique Faré, uma estratégia assente nas grandes estruturas formativas, na validade dos seminários menores como meios de formação dos seminaristas e na eficácia da promoção vocacional em colégios e seminários diocesanos.

Os combonianos em Portugal, ao reconstituírem-se como província, antecipam estes novos ventos e preparam as mudanças que se afiguram como necessárias para alinhar o percurso histórico da obra comboniana em Portugal com o percurso de renovação conciliar da Igreja.

5. Que lições aprender desta experiência?

A nossa sabedoria popular diz-nos que a história é mestra da vida. Não tanto porque se repita, pois ela nunca se repete. Mas porque nos ensina as atitudes fundamentais do viver: ensina-nos uma arte de viver. Para ela nos voltamos, cada dia, nesta tarefa nunca plenamente cumprida de aprendermos a arte de viver, «conjugando os êxitos do passado com os desafios do futuro, sem ter medo do presente», o único tempo que nos é dado para viver.

Primeira lição que podemos tirar: não faz sentido uma união imposta ou à revelia das pessoas. Tendo a união das presenças combonianas a ver com a união de pessoas, de mentes e corações, não faz sentido pensar e executar uma união à revelia das pessoas, contra elas ou sem partir delas, das suas opiniões e sentimentos. A actual Regra de Vida acautela este passo fundamental

Segunda lição: sendo a união um acto para reunir pessoas e consensos em torno de um projecto comum, o impacto positivo depende da acção de um líder carismático, de uma visão aglomerante (uma estratégia definida) e da existência de recursos humanos e outros. Dificilmente a conjugação dos três elementos se dá de uma forma sincronizada, ao mesmo tempo. E há tempos em que nenhum destes três elementos se verificam, como parecem ser os nossos tempos (sem líderes capazes de empolgar as pessoas, sem visão estratégica para a nossa presença e acção na Europa, sem recursos humanos para investir, já que os únicos recursos a aumentar são os idosos).

Terceira lição a tirar: convém definir o estatuto canónico jurídico de uma união, antes de a criar. Isto é, primeiro definir as regras do seu funcionamento, objectivos e visão e depois o resto, pessoas e estruturas. Não tem lógica criar uma realidade jurídico-canónica nova e só depois, eventualmente, criar o estatuto e as regras do seu funcionamento.

Quarta, a união das presenças combonianas em Portugal e Espanha é o último acto de um modelo de coordenação do instituto, ligado à casa-mãe em Verona e marcado pela intervenção pessoal e directa do superior geral em todos os assuntos. Este modelo familiar teve os seus méritos, mas estava a chegar ao fim. Com a mudança da Cúria Geral de Verona para Roma em 1964, este modelo está condenado a desaparecer para dar lugar a um modelo mais participativo de acompanhamento da vida do instituto, com a criação dos secretariados gerais e provinciais, decididos no capítulo geral de 1969.

Neste capítulo procurou-se um modelo de coordenação mais eficiente, para um instituto em crescimento, numa igreja em fermentação de renovação conciliar. A lição que podemos aprender está aqui: na atenção ao momento que vivemos, tanto em termos de instituto, como de igreja e sociedade, adequando o modelo de acompanhamento da vida do instituto.

No capítulo de 69, a escolha foi a de criar as estruturas necessárias para coordenar melhor as presenças combonianas e não aglomerá-las. O momento actual que vivemos como instituto não é de crescimento, é de recessão; e o que eventualmente fará sentido é adequar, simplificando, as estruturas de coordenação, e não aglomerar as presenças em unidades maiores, deixando intactas as inadequadas estruturas de coordenação herdadas do passado.

6. Conclusão: Os desafios que nos acompanham, para lá da união

Para alguns observadores da vida dos institutos missionários, neste começo de século na Europa, quatro décadas e meia após a experiência que aqui consideramos (envelhecimento e falta de vocações, indefinição da própria identidade carismática, incerteza sobre a sua função eclesial), a hora seria mesmo de refundação.

Eu sugiro que usemos o termo de reconfiguração, para falarmos da tarefa que espera os missionários combonianos, presentes em Portugal e Espanha, neste começo de século: reconfigurar-se, na fidelidade ao seu carisma missionário, neste novo contexto eclesial, social e cultural, redefinindo objectivos e metas para a sua presença e actividade.

Esta tarefa de reconfigurar o próprio carisma no particular kairós, tempo de graça, que vivemos confere renovado interesse ao exercício de preservação da memória comboniana e ao estudo da experiência que aqui procurámos fazer. A leitura desta história pode ajudar a resgatar os fermentos da resposta carismática, que a história contém, aos desafios do tempo presente.

O Papa Francisco, ao receber o prémio Carlos Magno, no dia 6 de Maio de 2016, cita o escritor Elie Wiesel (1928-2016) e fala da necessidade que os países da Europa (e podemos dizer as igrejas, congregações e institutos missionários na Europa), têm de transfusões de memória: «Hoje é de importância capital realizar uma transfusão de memória. É preciso fazer memória, distanciar-se um pouco do presente, para ouvir a voz dos nossos antepassados. (...) A transfusão de memória liberta-nos da tendência actual, muitas vezes fascinante, de forjar à pressa, sobre areias movediças, resultados imediatos».

Que transfusões de memória promover, para actualizar a força e o poder de transformação do carisma comboniano em Portugal e Espanha?

Recordar a união pelas estruturas físicas dos seminários aumentados (em Viseu, Maia e Vila Nova de Famalicão) não é certamente uma herança preciosa ou atraente para conservar. Hoje essas estruturas são mais uma dificuldade que um benefício que nos ajude a reconfigurar o carisma comboniano (manda a verdade dizer que não só por culpa do P.e Faré, que as fez aumentar, mas também por nossa incapacidade de lhes dar um novo uso em linha com o carisma comboniano).

Já recordar o processo de conhecimento, informação e colaboração que a união favoreceu e que continuou depois dela (ligados ao noviciado até 1972 e à animação missionária e revistas na década de 70: visitas, informação, passar os mares, etc), aparece como herança a conservar. Este processo reavivou-se nos anos 90, com a constituição do noviciado ibérico (no ano de 1993, com a presença dos noviços espanhóis e do P.e José Delgado como mestre em Santarém) e continuou com a constituição do noviciado europeu (no ano de 2008, com a presença dos noviços espanhóis e do P.e José Juan Valero, padre mestre de 2010 a 2016).

Falando dos desafios que nos acompanham, para além da união, o primeiro é certamente conservar a mística da missão universal, segundo o carisma comboniano, para lá das nossas fronteiras eclesiais e sociais, a que os combonianos em Portugal e na Espanha permaneceram fiéis, antes, durante e depois da união. Durante a união, nenhum comboniano espanhol optou ou foi enviado em missão para Portugal, como nenhum comboniano português optou ou foi enviado em missão para Espanha. Numa mística partilhada, sair em missão significa outra coisa. Nas duas décadas que se seguem à união, combonianos portugueses e espanhóis voltam a encontrar-se nos caminhos da missão em países e igrejas da África, das Américas, da Ásia.

Entre Portugal e Espanha, a colaboração dá-se, como vimos, ao nível da acção formativa, nos seminários menores e no noviciado, durante e depois da união. Para além destes casos, há apenas duas situações a registar: um comboniano espanhol que é destinado a Portugal para a formação nos anos 80 (Fernando del Cabo) e um português que é destinado a Espanha para a animação missionária já nos anos 2000 (P.e Alberto Silva).

Um segundo desafio tem a ver com a animação missionária. Os combonianos que viveram a união souberam encontrar caminhos inovadores de animação missionária. Isto é, modos e meios para levar às pessoas e às comunidades cristãs uma visão da vida cristã fortemente marcada pela paixão missionária. Anima-os o sonho de chegar aos povos, à África de modo especial. No nosso tempo, o Papa Francisco é nosso aliado nesta tarefa, ao reavivar «o sonho missionário de chegar a todos», que em gramática comboniana se conjuga como sonho missionário de chegar a todos os povos e culturas, a começar pelos mais excluídos.

Um terceiro desafio que nos acompanha tem a ver com (o que chamamos) promoção vocacional e formação. Os combonianos que viveram os anos da união, a começar pelo P.e Henrique Faré, foram capazes de criar um ambiente, um contexto educativo marcado pelos valores humanos, pela cultura, pela arte e pelo saber, pela beleza da vida cristã, onde os adolescentes e jovens dos dois países se pudessem enamorar da vocação missionária.

Os vários seminários combonianos, em Portugal e na Espanha, ofereceram este ambiente onde o génio português e espanhol entrou em contacto vital com o carisma missionário comboniano. Com os seus métodos educativos particulares, frutos de uma determinada época, os seminários podem passar de moda, como é o caso nas décadas da história que se seguiram à união. Mas a tarefa de criar, sempre de novo, um ambiente educativo em que os jovens se possam abrir com paixão à vocação cristã, missionária e comboniana, permanece um desafio que atravessa os anos para os combonianos nos dois países.

Façamos então, para terminar, a pergunta tabu, a pergunta que se impõe: a experiência que analisámos, é uma experiência para repetir?

Cada um de nós poderá tirar as suas conclusões e dar a sua resposta. À luz da análise que fizemos creio que não. Porque não é prioritária nem é solução para nada.

Prioritária é a reconfiguração das presenças combonianas, no contexto das nossas igrejas locais, em torno às três questões fundamentais, que acabámos de considerar: a identidade do carisma missionário comboniano; a procura de caminhos para vivermos e testemunharmos, a pessoas e a comunidades cristãs, a beleza da vocação missionária comboniana; a construção de ambientes e itinerários formativos de iniciação à vocação missionária onde adolescentes e jovens se possam apaixonar pela vocação missionária.

Para esta tarefa são bem vindas todas as iniciativas de conhecimento recíproco, de informação e colaboração, entre Portugal e Espanha, como com as demais presenças combonianas na Europa. Bem vindas e certamente necessárias, dadas as dificuldades da tarefa que nos espera e a ausência de um road map seguro, dadas as peculiaridades eclesiais, sociais e culturais em que vivemos.

Ao dizer não à repetição da experiência, não quero dizer que recuse a experiência e o que ela trouxe, ou que tenha problemas com este trajecto da nossa história.

As transfusões de história comboniana, ensinam-nos também a lição da gratidão, a capacidade de sermos gratos a Deus e às pessoas, pelo que recebemos no caminho da nossa história, desta experiência que aqui analisámos. Os combonianos que a viveram, em Portugal e na Espanha, souberam ser pessoas de grande generosidade de espírito e de trato, capazes de discernirem um desígnio de salvação, um benefício, por detrás dos percalços de uma etapa da história; capazes de perceber, como diz a nossa gente, que Deus escreve sempre direito, mesmo quando o faz com linhas tortas.
P.e Manuel Augusto Lopes Ferreira, mccj