Quinta-feira, 19 de Setembro de 2024
O Relatório de Síntese da primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre «Uma Igreja Sinodal em Missão» deixou uma tarefa específica ao Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagáscar (SECAM na sigla em inglês), encorajando-o «a promover um discernimento teológico e pastoral sobre o tema da poligamia e sobre o acompanhamento das pessoas que vivem em uniões poligâmicas, que se aproximam da fé.»
O portal aciafrica.org, da Associação para a Informação Católica em África, que acompanha de perto o dia-a-dia da Igreja Católica no continente, reportou duas respostas à tarefa. Em dezembro, a IMBISA, organização que engloba as conferências episcopais de nove países da África Austral, pediu aos teólogos para iluminarem as práticas da iniciação e da poligamia. A resposta da SECAM veio em abril com o estabelecimento de uma comissão (de teólogos, na maioria) para refletir sobre o a proposta do Sínodo. As deliberações seriam apresentadas na assembleia plenária do organismo continental, agendada para julho no Ruanda.
São João Paulo II deixou o mesmo convite aos bispos africanos depois do primeiro Sínodo sobre a Igreja em África. Dom Armido Gasparini, o então bispo de Hawassa, no sul da Etiópia, contou-me, frustrado, que tentou introduzir a questão numa reunião da Conferência Episcopal. Contudo, o arcebispo de Adis-Abeba, o cardeal Paulos Tzadua, cortou a discussão pela raiz, afirmando de que na Etiópia não havia poligamia. Que entre os amaras e os tigrinos não haja poligamia é possível; estas etnias foram evangelizadas há séculos. No Sul, entre os povos que foram anexados à Etiópia no fim do século XIX, a situação é bem diferente. A título de exemplo, na missão de Qillenso, onde sirvo, dois católicos têm famílias numerosas: o senhor Borama tem 32 filhos de três esposas enquanto o senhor Elema tem 27 filhos de cinco. No passado, perdemos um número de bons catequistas por terem entrado em uniões matrimoniais adicionais.
UMA QUESTÃO COMPLEXA
A questão da poligamia é uma matéria complexa de tratar. Envolve antropologia, sociologia, cultura, tradição e ética, entre outros aspetos. Na internet, há grandes discussões sobre o tema. Se o rei Salomão teve 700 esposas, porque temos de ter só uma? – perguntam alguns internautas.
Entre os gujis, com quem trabalho, nos anos 90 do século passado, era comum um homem por volta dos 30-40 anos tomar uma segunda ou mais esposas, dependendo da capacidade económica. Cada casamento pressupõe sempre o pagamento de um dote à família da noiva. A poligamia não é uma questão de perversão sexual, mas de prestígio pessoal e social. A importância de um homem na cultura guji é medida pelos filhos que tem e pelo gado que possui. Nós, os missionários, não temos filhos, mas temos algumas cabeças de gado.
A poligamia entre os gujis coloca alguns desafios concretos: normalmente o primeiro filho é aquele de quem o pai cuida, porque é o primogénito que lhe dá o nome. Quando nasce o primeiro filho o pai e a mãe deixam de ser chamados pelos nomes próprios para serem tratados por pai ou mãe do nome do filho nascido. Cada esposa tem a própria habitação e os outros rebentos ficam sob o cuidado das mães. O pai vai andando de casa em casa. As novas gerações são sensíveis a esta desigualdade de tratamento e, pelo que observo, a poligamia está em declínio entre os gujis.
REVISITAR AS ESCRITURAS
Segundo a prática católica, quando um homem polígamo pede para ser batizado depois da catequese do catecumenado, deve escolher uma esposa e despedir as outras. Para os gujis, a primeira esposa é sempre a mais importante. Mesmo que ela aceite que o marido pretenda uma mulher mais nova, se ela quiser voltar ele é obrigado a recebê-la.
Uma vez, em conversa com uma missionária luterana alemã, abordamos a prática da sua Igreja de batizar o marido polígamo com toda a família. Indaguei das bases para essa opção. Ela respondeu que, na primeira carta que Paulo escreveu ao seu colaborador Timóteo, o apóstolo dos gentios explica que a condição para ser bispo ou diácono é que «seja marido de uma só mulher». Este detalhe revela que, embora a comunidade cristã guardasse os ensinamentos de Jesus em relação ao matrimónio – união indissolúvel entre um homem e uma mulher para a vida –, admitia exceções. De facto, a exigência de ser marido de uma só mulher indicia que havia cristãos em uniões poligâmicas.
O acompanhamento pastoral das pessoas em uniões poligâmicas pede uma revisitação do Novo Testamento. Jesus é claro: «Desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só. Portanto, já não são dois, mas um só. Pois o que Deus uniu não o separe o homem» (Marcos 10, 6-9). Os discípulos quando registaram tal exigência, reagiram dizendo que se é assim, não convém casar-se.
Este é o princípio-base do matrimónio cristão: uma união monogâmica heterossexual para a vida. Contudo, a leitura atenta do Testamento cristão, revela que desde o princípio a Igreja admitiu exceções a este princípio radical.
O evangelista Mateus afirma por duas vezes que o divórcio é possível no caso de porneia, palavra grega de significado amplo, traduzida por união ilegal, fornicação, imoralidade sexual, adultério para os ortodoxos (Mateus 5, 32, repetido em 19, 9). Paulo, escrevendo aos cristãos em Corinto, na Grécia, permite que se uma das partes de um casal gentio receber o batismo e a outra quiser abandonar a união, a parte cristã pode recasar (1 Coríntios 7, 12-15). Esta exceção é chamada de privilégio paulino. Vimos antes que, os candidatos a bispo e diácono deviam ser maridos de uma só mulher (1 Timóteo 3, 2. 12) o que pressupõe haver poligamia entre as comunidades cristãs.
Há que juntar a estas exceções o privilégio petrino, a faculdade do papa de dissolver um matrimónio em benefício da fé de uma das partes. No caso de uma união poligâmica, por exemplo, a Igreja considera válido só o primeiro casamento. Contudo, o privilégio petrino concede ao marido poligâmico escolher a esposa de entre as mulheres que tem.
ACOMPANHAMENTO DE UNIÕES POLIGÂMICAS
A poligamia é uma realidade transversal ao continente africano, do Cairo ao Cabo. Qual é o acompanhamento possível das pessoas em uniões poligâmicas que se aproximam da fé? O SECAM prometeu apresentar uma reflexão teológica e pastoral em julho, mas não consegui encontrar nada.
A meu ver, e partindo da experiência de missionário entre uma etnia que pratica a poligamia, esta resposta tem de ser dada a nível teológico e a nível pastoral, com a mesma criatividade, justiça e licença da primeira comunidade cristã. Não pondo em causa os ensinamentos do Senhor sobre o matrimónio, admitiram algumas exceções. O importante é que a salvação de uma pessoa – de um polígamo que pede o batismo – não ponha em causa a salvação de terceiros (as esposas que tem de abandonar para ser batizado). Nalgumas culturas, a prostituição é o caminho possível para as mulheres abandonadas pelo marido.
Uma opção possível, é a prática pastoral que seguimos na missão de Haro Wato há duas ou três décadas: quando um homem polígamo terminava o catecumenado, o período de formação para receber o batismo, recebia um nome cristão e um crucifixo, mas só era batizado no fim da sua vida. Assim, acautelávamos o bem-estar de todas as suas esposas. Reconheço que se trata de uma meia-solução: o candidato polígamo é introduzido aos mistérios da fé, mas fica de fora da comunhão dos batizados. Outra opção pode ser a prática da Igreja Luterana de admitir no seu seio toda a família, administrando o batismo ao marido e a todas as esposas e os filhos que o desejem. Mas o discernimento pedido às conferências episcopais pode encontrar outras soluções que acautelam a dignidade de todas as pessoas envolvidas em uniões poligâmicas.
P. José da Silva Vieira,
Missionário comboniano em Etiópia