Sábado, 23 de Outubro de 2021
Tomo como título desta reflexão sobre o nosso processo de preparação do XIX Capítulo Geral uma expressão usada pelo Papa Francisco que, recentemente, recordou que «todos os institutos – sejam religiosos ou movimentos laicais – têm o dever de verificar, nas assembleias ou nos capítulos, o estado do carisma fundacional e fazer as mudanças necessárias nas próprias legislações». (…)

O estado do carisma fundacional

P. Manuel Augusto Lopes Ferreira

Tomo como título desta reflexão sobre o nosso processo de preparação do XIX Capítulo Geral uma expressão usada pelo Papa Francisco que, recentemente, recordou que «todos os institutos – sejam religiosos ou movimentos laicais – têm o dever de verificar, nas assembleias ou nos capítulos, o estado do carisma fundacional e fazer as mudanças necessárias nas próprias legislações».1

Proponho-me dar um contributo a este processo e é importante, desde o princípio, sublinhar o objectivo do exercício que se pretende fazer, isto é, apontar para o objectivo que temos a peito neste capítulo geral, ou seja, verificar «o estado do carisma fundacional comboniano». Por conseguinte, o processo de preparação do capítulo deve ser medido por este fim último, que é sim, o último a ser atingido, mas o primeiro a ter-se em mente, para manter-nos focalizados durante o processo de preparação e realização do próximo capítulo geral.

Partidos em desvantagem

Perante este objetivo último do capítulo – deste, porque de cada capítulo – é preciso dizer que iniciámos o processo de preparação em desvantagem, por uma causa imprevista; refiro-me ao contexto da pandemia que lhe lançou por cima como uma sombra, um manto de incerteza que não ajudou à reflexão e ao envolvimento de todos.

Inicialmente convocado de 5 de Setembro a 10 de Outubro de 2021, o XIX Capítulo Geral teve de ser suspenso e reprogramado para uma nova data, de 1 a 30 de Junho de 2022. Se à primeira convocação seguiu um tempo de incerteza que desmobilizou o interesse geral, ocorre agora viver um tempo de interesse e envolvimento, superando o espírito de apatia – uma passividade que nos reteve numa posição cautelosa – e aquela atitude que nos levou a deixar em suspenso o envolvimento pessoal.

Um outro factor não favoreceu o envolvimento de todos: o facto de haver quatro temáticas e caminhos de reflexão para a verificação capitular, Missão, Formação, Regra de Vida e Sustentabilidade (Economia). Esta variedade temática causou uma dispersão do interesse pelo capítulo, segundo as responsabilidades que cada um tem e o próprio âmbito de trabalho (a Formação e a Economia acabaram nas mãos dos especialistas, por exemplo).

É preciso encontrar modo de reconduzir as várias temáticas à sua unidade original e a indicação do Papa ajuda-nos a trazer de novo esta diversidade à sua unidade e ao interesse de todos.

No XIX Capítulo Geral somos chamados a verificar o estado do carisma fundacional comboniano em relação à missão, à formação, às regras do nosso viver comum e à economia. Esta responsabilidade é de todos, realizada de modo sinodal e por meio da delegação capitular. A revisão dos quatro âmbitos da vida e missão comboniana deve ser feita não apenas para actualizar as coisas e sintonizar com os tempos nem, menos ainda, para responder às nossas insatisfações com mais uma revisão; deve ser feita sobretudo para avaliar a sua validade actual à luz do carisma fundacional.

Falámos de apatia, falta de interesse e de envolvimento. Naturalmente, estas expressões podem ser contestadas… são impressões pessoais que nascem daquilo que lemos sobre encontros e assembleias provinciais e continentais, sobre o número (baixa percentagem) das respostas aos questionários, sobre o escasso número de reflexões surgidas nas nossas publicações e no site www.combonimission.net, organizado precisamente para favorecer a livre discussão e participação de todos. Não tendo outro modo de avaliar a participação, estes indicadores falam por si e podem ser tomados como expressão de um estado de ânimo. No comunicado sobre o XIX Capítulo Geral2 e com a nova data, o Conselho Geral também actualizou o calendário do caminho em direcção ao capítulo, oferecendo-nos a oportunidade de assumir um novo fôlego e empenho no processo de preparação; não basta reescrever as datas, é preciso renovar o espírito da preparação. Neste sentido, existe uma coincidência eclesial que vem em nossa ajuda: as novas datas colocam o nosso caminho de preparação do capítulo no contexto eclesial do caminho de preparação do novo sínodo (de Outubro de 2021 a Outubro de 2023).

Recuperar a inspiração

Também aqui, novamente, as indicações do Papa Francisco podem ajudar-nos a superar as dificuldades que habitualmente encontramos nos nossos processos de reflexão e revisão: apatia, fechamento individual, incapacidade de ouvir-nos, espírito de parte, eliminação da nossa responsabilidade, delegando a outros. Francisco fala de «um itinerário pensado com um dinamismo de escuta recíproca. Ouvir-se; falar-se e ouvir-se: Não se trata de um recolher opiniões, não. Não é uma sondagem, mas trata-se de ouvir o Espírito Santo»3.

Encorajados por quanto nos diz Francisco sobre a escuta e sobre o caminhar juntos, devemos perguntar-nos se não fala (também) para nós, quando acrescenta: «O tema da sinodalidade não é um capítulo de um tratado de eclesiologia, e menos ainda uma moda, um slogan ou o novo termo a usar ou instrumentalizar nos nossos encontros. Não! A sinodalidade exprime a natureza da Igreja, a sua forma, o seu estilo, a sua missão»4. De facto, devemos admitir que temos dificuldade em escutar-nos e em caminhar juntos e que somos mais capazes de instrumentalizar termos e seguir protagonismos de moda do que a desenraizar os limites que encontramos nos nossos processos de revisão e discernimento: «Pede-se de nós» recorda o Papa, além de uma «contínua inquietude interior… uma grande docilidade, grande humildade, para reconhecer os nossos limites e aceitar mudar modos de fazer e de pensar ultrapassados, ou métodos de apostolado que já não são eficazes, ou formas de organização da vida internas que se revelaram inadequadas ou até mesmo prejudiciais».

Partir do carisma fundacional

No passado, não muito distante, a questão do carisma fundacional, isto é, da identidade do carisma comboniano, jogava-se à volta da questão da finalidade do Instituto, uma abordagem que privilegiava a dimensão apostólica do carisma, deixando na sombra outras dimensões mais pessoais, como a espiritualidade. Esta abordagem condicionou a reflexão no capítulo geral de 1969 e a discussão que levou ao famoso número 13 da Regra de Vida5 e às suas ulteriores interpretações. Hoje temos consciência de que a consideração sobre o carisma fundacional deve ter uma abordagem mais inclusiva e interior, dando novamente valor à personalidade do fundador e à sua espiritualidade. Numa palavra, considerar o dom particular de graça (carisma) concedido pelo Espírito ao fundador; isto é, olhar não só ao agir apostólico do fundador, mas ao seu ser, à individualidade do seu caminho espiritual. A memória do fundador procura tornar presente no nosso hoje o mistério desta graça, deste dom à origem do Instituto, por isso fundacional, para que continue a iluminar a nossa vida, como iluminou a do fundador.

Neste sentido, o carisma fundacional é a pedra angular de um carisma e missão partilhados entre os membros de um Instituto. A consciência e o sentido da «missão comum, partilhada» (hoje bastante perdido entre nós) resulta não de um amálgama das vocações/missões individuais dos membros, mas do poder de atracção de um testemunho carismático, o do fundador, capaz de atrair e sustentar uma sequela.

Francisco, de novo, recorda-nos que «pertencer a uma associação, a um movimento ou uma comunidade, sobretudo se fazem referência a um carisma, não deve fechar-nos numa “redoma de vidro”, fazer-nos sentir a salvo, como se não houvesse necessidade de qualquer resposta aos desafios e às mudanças». O Papa parece sugerir aqui uma mudança de perspectiva: não somos nós que possuímos definitivamente um carisma, mas é o carisma que, de modo dinâmico e como realidade de graça divina, nos possui nas estações da nossa vida, nas várias épocas e gerações do Instituto. Por isso, é preciso «aprofundá-lo sempre melhor, reflectir sempre juntos para incarná-lo nas novas situações que vivemos;» neste sentido, somos discípulos missionários «sempre em caminho, sempre em conversão, sempre em discernimento.»6

Na verificação sobre o estado do carisma fundacional, recai sobre os superiores e sobre a hierarquia e sobre quantos exercem a liderança eclesial uma responsabilidade particular, uma função de guia que Francisco define como serviço à comunhão: «Ninguém é senhor dos dons recebidos para o bem da Igreja – somos administradores –, ninguém deve sufocá-los, mas deixá-los crescer, comigo ou com aquele que vem depois de mim. Cada um, lá onde é colocado pelo Senhor, é chamado a fazê-los crescer, a fazê-los frutificar, confiante de que é Deus que opera tudo em todos (cf. 1Cor 12, 6) e que o nosso verdadeiro bem frutifica na comunhão eclesial.»7 Portanto, o exercício da autoridade e do discernimento, da parte dos superiores (capitulares ex-ufficio), ou da representação capitular, da parte dos capitulares eleitos, não deve anular a responsabilidade pessoal de cada um na verificação do estado do carisma fundacional.

O estado do carisma

Como dom de graça, o carisma fundacional permanece um mistério, uma realidade que nos é dada e por isso deve ser acolhida na fé e deixada crescer na esperança e no amor. Se o núcleo divino do carisma permanece mistério a acolher, os sinais da sua presença e da sua acção na vida pastoral e na vida do Instituto são mais visíveis e podem ser verificados. É este exercício de verificação que cada capítulo se propõe fazer, para aferir se o carisma mostra a sua fecundidade interior e apostólica, se está a iluminar a vida dos membros e a vida e a missão do Instituto como tal. E a verificação deve ser feita por cada um e por todos, sobre orientações mais antigas e mais recentes, sobre as escolhas feitas, naturalmente de modo adequado e diferenciado.

Há uma sensação difusa entre nós: que, nos seus vários âmbitos, o carisma fundacional comboniano tenha progressivamente perdido impulso, vitalidade. A intensidade desta sensação varia segundo continentes e países, mas a sensação constitui um fio comum que une a variedade das situações eclesiais e sociais em que vivemos. Para permanecer no âmbito das quatro pistas, devemos interrogar-nos, antes de mais, sobre o estado do carisma fundacional em relação à evangelização (missão). Na Europa, certamente, vivemos um momento de perplexidade que partilhamos com os outros institutos missionários: não conseguimos incarnar e oferecer às Igrejas locais, confrontadas com o desafio da evangelização do continente, um modelo de missão que seja resposta fecunda, segundo os frutos do caminho cristão (que reproponha o primeiro anúncio, mostre capacidade de convocação e iniciação cristã de pessoas e grupos, dê resposta aos desafios de uma transformação social e política animada pelo evangelho de Cristo).

Seguindo um modelo de missão testado noutro lugar, abraçámos as várias causas no âmbito social e político (da justiça e paz, das migrações e da preservação do ambiente…); estas escolhas mantiveram-nos ocupados, deram-nos também uma certa relevância social e política, mas mantiveram-nos num percurso que esqueceu as outras dimensões constitutivas da evangelização (anúncio, iniciação cristã) e não nos radicou nas Igrejas locais: os casos recentes de rejeição, por parte de alguns bispos, em acolher-nos, a nós e aos nossos projectos, nas suas dioceses ou em confiar-nos responsabilidades no âmbito missionário, são de per si indicativos desta situação; e a generalizada falta de vocações nas províncias da Europa diz alguma coisa sobre esta situação de desenraizamento do carisma missionário nas Igrejas locais e entre as novas gerações de católicos europeus.

Nos outros continentes (em África, por exemplo), a sensação pode ser diferente e mais positiva, se olharmos às capacidades de inserção no âmbito social e de acção apostólica nas Igrejas locais. Mas também aqui, numa missão feita a ritmo de projectos no âmbito social e eclesial e manutenção de paróquias, há quem se pergunte como é que, como Instituto, perdemos a capacidade de ir ao encontro das gentes com apreço pela sua cultura e o conhecimento das suas línguas; como é que nos desempenhamos no encontro e no primeiro anúncio, na capacidade de acompanhamento de pessoas e comunidades, de preparação dos ministérios ordenados e não ordenados (desempenho no âmbito da formação, dos catecumenatos e centros catequéticos, nos seminários), levando por diante uma presença missionária «toca e foge», que concede muito, talvez demasiado, a uma gestão da missão segundo um modelo paroquial.

Quem escreve, como é o caso, pode certamente carregar as tintas e generalizar. Mas, indo além das generalizações, devemos convir que não se pode evitar a necessidade de uma verificação dos modelos de missão que levamos por diante nos vários continentes, com o risco de perder a identidade missionária e a significância na Igreja. Nós, de modo particular e como Instituto missionário, não devemos dar por descontado o reconhecimento eclesial (nas palavras do Papa) que vê (também) em nós «um claro sinal da vitalidade da Igreja, uma força missionária e uma presença de profecia que nos faz bem esperar para o futuro». Sendo-nos claro, à luz da nossa história, que o fomos no passado, devemos ter a coragem de perguntar-nos se o somos ainda no presente. E sonhando um futuro significativo, ter a consciência de que ele «deve ser preparado aqui e agora, aprendendo a ouvir e discernir o tempo presente com honestidade e coragem e com a disponibilidade a um constante encontro com o Senhor, a uma constante conversão pessoal.

Escrevemos isto, acolhendo como dirigidas a nós as palavras do Papa aos movimentos. Advertiu-os também sobre este dar por descontada a fecundidade apostólica e o (pretenso) profetismo do seu carisma, recusando confrontar-se com os sinais do eventual esgotamento carismático: «Pensar ser “a novidade” na Igreja e por isso não necessitados de mudanças, é uma tentação que tantas vezes acontece (…) e que pode tornar-se uma falsa segurança. Também as novidades envelhecem depressa!»8

Perfil missionário

A revisão da formação, isto é, do nosso percurso de iniciação ao carisma missionário comboniano constitui um outro tema do próximo capítulo geral. Se olharmos às vezes e ao modo em que este tema voltou nos últimos capítulos, somos levados a pensar que ele se tenha tornado uma fixação capitular, um sinal vermelho que não conseguimos apagar, indicador de um problema não resolvido.

Nos últimos anos, a revisão da formação fez-se sobre um modelo de formação único para todo o Instituto, que previa as mesmas fases formativas para todos os candidatos. Além disso, o modelo manteve intacta a sua origem e natureza: recolhida da formação delineada nos seminários, era pensado para candidatos que, por idade e psicologia, eram susceptíveis de ser formados, isto é, «configurados» para os valores e dinâmicas propostas no modelo. Os últimos anos demonstraram a inadequação deste modelo. Na Europa chegámos a um beco sem saída, no tocante à iniciação ao carisma comboniano (promoção vocacional e formação) e os limites do modelo são evidentes: as províncias experimentam um esgotamento no que diz respeito à passagem do carisma às novas gerações e as últimas vocações na Europa não se adequam, por psicologia e idade, ao modelo formativo. Em África, a situação é diferente e o modelo parece aguentar-se mesmo se aumentam os sinais de incerteza, se olharmos atentamente à situação. Dois indicadores são particularmente importantes: o número de candidatos que abandonam o percurso formativo durante o período dos votos temporários e o número dos abandonos e das crises nos primeiros anos de ministério e de vida missionária.

A verificação da formação, para lá dos esquemas e da implantação do modelo formativo, constitui uma ocasião para julgar se o perfil dos jovens missionários combonianos africanos, americanos e asiáticos, que se impôs no actual percurso formativo comboniano (e que podemos eventualmente ver nos candidatos que o completaram nos últimos decénios), aguenta o confronto com o carisma fundacional, isto é, com o carisma e o perfil do Fundador: identidade vocacional missionária, paixão por Deus e pela humanidade, mística do martírio e da consagração para a vida, amor à Igreja e amor a quantos esperam o Evangelho e a sua força redentora, capaz de servir a Palavra de Deus e edificar a comunidade cristã, dedicação ao ministério recebido, capacidade de promover uma transformação social inspirada no Evangelho e centrada na regeneração (empowerment) das pessoas e das suas culturas.

A verificação deve ser feita por parte de todos os membros, reconhecendo obviamente a prioridade aos formadores e a quantos têm experiência de formação. Mas a percepção dos membros do Instituto, no seu conjunto, é importante porque capta, de modo espontâneo, lacunas e virtudes, fraquezas e forças. E, olhando às fraquezas, na percepção de alguns, o perfil actual parecer apresentar ainda algumas sombras: identidade missionária carente nos sacerdotes, com uma imagem de presbítero mais pároco que missionário; formação teológica e bíblica frágil, com um fraco serviço à Palavra de Deus; falta de liberdade pessoal, perante a própria cultura e âmbito familiar; passivo sentido de fraternidade e vida comum, com fuga para o individualismo e o mundo virtual e digital; carente integração apostolado-espiritualidade que pode revelar-se no activismo, no protagonismo e na ambiguidade de vida.

Sustentabilidade

O tema da sustentabilidade, sobretudo no âmbito económico, impõe-se de modo pacífico.

Por um lado, todos temos consciência de que benfeitores e apoios externos estão em recessão, agravada agora pela pandemia: a geração dos cristãos que apoiava a nossa vida e missão está a desaparecer e aquela que hoje valoriza o nosso trabalho não tem o mesmo espírito e generosidade; as comunidades e províncias em passivo económico crónico e algumas delas estão já a consumir o património que se supunha se devesse conservar para o futuro.

Por outro, algumas medidas tomadas nos últimos capítulos e gradualmente aceites e postas em prática (como o fundo comum) têm necessidade de ser verificadas e actualizadas: se a corresponsabilidade no uso dos recursos se estendeu aos membros do Instituto (o tirar do fundo comum), o mesmo não se pode dizer da corresponsabilidade na procura dos recursos (o pôr no fundo comum). Prever o futuro das províncias unicamente com base nas ofertas chegadas do exterior não é sustentável, se tivermos em conta o envelhecimento do Instituto e da sua inevitável configuração na Europa e América.

O XIX Capítulo Geral fará também a verificação da Regra de Vida, preparada com o envolvimento de todos os membros do Instituto e pelo trabalho de uma comissão, de que se conhecem já os resultados. Alguns de nós têm a impressão de que esta revisitação e revisão da Regra de Vida não nos tenha levado a uma conclusão à altura dos tempos que estamos a viver… e que o capítulo terá aqui um tema ainda a aprofundar.

Duas são as áreas em que se impõe uma revisão das nossas regras que, à luz do carisma fundacional, tenha em conta o contexto actual do Instituto: enquanto a Regra de Vida foi pensada num momento de expansão do Instituto, vivemos, hoje, uma fase de recuo. E na Igreja, vivemos um momento de procura do diverso e integração do novo, um momento que requer atenção às escolhas que fazemos e à sustentabilidade de todas as dimensões da vida e da missão do Instituto.

A primeira área é a do serviço missionário do Instituto9 (a nossa missão) que, na actual Regra de Vida, apresenta as dimensões fundamentais da missão comboniana, de modo integrado e em resposta ao contexto conciliar. Hoje, mesmo se o contexto comboniano é de redução dos empenhos (como temos visto nos últimos capítulos), vivemos num contexto eclesial de procura e integração de novas dimensões da missão cristã (migrantes, periferias, defesa do ambiente, fraternidade, ética da vida e da economia, defesa dos últimos e dos descartados na sociedade, como as crianças de rua e as vítimas do tráfico de seres humanos…) e não faltam os combonianos que pensam que se devam abraçar todas as dimensões da missão cristã que o Papa propõe a toda a Igreja.

Actualmente o Instituto está em diminuição numérica e não se vê como se possam abraçar todas estas dimensões por toda a parte onde estamos. Até agora, o Instituto deixa esta resposta à iniciativa carismática do indivíduo e à sua sensibilidade, mas é necessário também fazer um discernimento comum e ver, em fidelidade ao carisma fundacional e em resposta aos sinais dos tempos e dos lugares, quais são as dimensões da missão cristã hoje que podemos abraçar e fazer nossas como Instituto e de modo sustentável. Quanto mais omitimos este discernimento carismático mais deixamos a porta aberta à fragmentação e à confusão carismática, e perdemos o sentido de missão partilhada.

A segunda dimensão da nossa vida que necessita de actualização da legislação é a do exercício da autoridade. Num Instituto em diminuição numérica ocorre encontrar novo equilíbrio entre o favorecer a mudança de liderança e o valorizar quem a exerce com seriedade e competência. A nossa actual Regra de Vida favorece um rápido ritmo de mudança (período de 6 anos não renováveis para o CG, dois períodos de três anos para os outros cargos) que risca de esgotar a capacidade de liderança; facilitar a eleição a um segundo período pode ajudar a equilibrar e integrar melhor a liderança no Instituto.

A revisão da Regra de Vida deveria, além disso, integrar no texto constitucional a última legislação produzida e adoptada no Instituto em âmbitos novos (por exemplo na economia, com o Fundo Comum, e na responsabilidade colectiva com o Código de Conduta). Para estar em sintonia com as últimas indicações da Igreja, esta legislação deverá ter uma correspondência nos textos constitucionais e um caráter mais evidente de obrigatoriedade.

Olhar juntos ao futuro

Em cada estação, em cada tempo e lugar, verificar as várias dimensões da nossa vida e missão à luz do carisma fundacional significa viver o presente com um olhar capaz de abraçar passado e futuro, tradição e inovação. Sem cair «no restauracionismo do passado que nos mata», como adverte o Papa Francisco, devemos «olhar juntos ao futuro» e fazer apelo à nossa tradição carismática, ao carisma fundacional, sabendo que a tradição viva da Igreja, como aquela de um Instituto missionário, parte «dos fundamentos, das raízes (…), funda-se no essencial, no bom anúncio, na proximidade e no testemunho». Como diz o Papa dos patronos da Europa, podemos também nós dizer do nosso santo fundador e das missionárias e missionários das gerações que nos precederam que «não se preocuparam com os tempos sombrios, as adversidades e alguma divisão, que sempre existiu. Não perderam tempo a criticar e culpabilizar. Viveram o Evangelho, sem olhar à relevância e à política.»10

Ocorre, pois, para tomar a sério o nosso empenho de revisão da vida do Instituto, à luz do carisma fundacional e na linha da sustentabilidade, um «abanão evangélico» e, por isso, precisamos de sentir como dirigida (também) a nós a pergunta do Papa Francisco aos bispos da Europa: «Estamos tranquilos porque no fundo não nos falta nada para viver, ou inquietos ao ver tantos irmãos e irmãs longe da alegria de Jesus?». Para Francisco a tentação é evidente: permanecer «cómodos nas nossas estruturas… na satisfação de um certo consenso, enquanto à volta os templos se esvaziam e Jesus é sempre mais esquecido.»11

Este olhar de conjunto implica escuta e confronto recíproco, na lógica de um percurso sinodal seja agora, na fase de preparação do capítulo, no envolvimento de todos, seja na fase da sua realização, no trabalho dos capitulares. Neste sentido, o contributo que procurámos oferecer com esta reflexão tem uma lacuna que temos de reconhecer: falta a escuta dos outros e o confronto com as suas opiniões e contributos. Esta situação deriva do facto que não se conhecem ainda os balanços (os documentos das assembleias provinciais e continentais de preparação ao capítulo, supondo que existam…), nem os resultados da sondagem promovida pela Direcção Geral; nem o texto das relações das províncias e continentes. É preciso esperar que sejam publicados para completar este trabalho de reflexão, para alargar esta escuta e confronto recíproco e fazer crescer uma consciência comum sobre os problemas, e desejar que todos, nós que escrevemos e lemos e os capitulares que debaterão e farão discernimento, os tenham em consideração, superando a tentação (recorrente nos últimos capítulos gerais) de pensar que os membros de um capítulo são soberanos e podem fazer discernimento por infusão directa, saltando a escuta e o confronto com aqueles que representam.

P. Manuel Augusto Lopes Ferreira, mccj
Roma, 10 de Outubro de 2021
Festa de São Daniel Comboni

«O Instituto é uma reunião de eclesiásticos e irmãos… O objectivo deste Instituto… é o cumprimento do mandato dirigido por Cristo aos discípulos de pregar o Evangelho a todas as gentes… e tem como finalidade específica a regeneração dos povos negros, que são os mais necessitados e abandonados do universo».12

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NOTAS

1) Papa Francisco, Audiência aos participantes no encontro com os moderadores das associações de fiéis, dos movimentos eclesiais e das novas comunidades, Roma, 16.09.2021.

2) MCCJ BULLETIN, Comunicado ao XIX Capítulo Geral, Julho-Agosto 2021, página 1.

3) Papa Francisco, Audiência aos Fiéis da Diocese de Roma, 18.09.2021.

4) Papa Francisco, Audiência aos Fiéis da Diocese de Roma, 18.09.2021.

5) Regra de Vida, Fim do Instituto, 13; 13.1; 13.2

6) Papa Francisco, Citações tiradas da Audiência aos Fiéis da Diocese de Roma, 18.09.2021; e da Audiência aos participantes no encontro com os moderadores das associações de fiéis, dos movimentos eclesiais e das novas comunidades, 16.09.2021.

7) Papa Francisco, Audiência aos participantes no encontro com os moderadores das associações de fiéis, dos movimentos eclesiais e das novas comunidades, 16.09.2021.

8) Papa Francisco, Audiência aos participantes no encontro com os moderadores das associações de fiéis, dos movimentos eclesiais e das novas comunidades, 16.09.2021.

9) Regra de Vida, Parte III, em particular os n. 56-71.

10) Papa Francisco, Aos Representantes das Conferências Episcopais da Europa, Basílica de São Pedro, 23 de Setembro de 2021.

11) Papa Francisco, ibidem.

12) Daniel Comboni, Regras do Instituto das Missões para a Nigrícia, Verona, 1871, Escritos 2646-2647.