Quinta-feira, 4 de Julho de 2019
Convidaram-me para reflectir sobre o binómio profecia e missão talvez por ser missionário consagrado. Profecia, evangelho e esperança são as linhas com que se faz o tecido da consagração missionária. O Papa Francisco escreve na carta apostólica às pessoas consagradas: «Espero que “desperteis o mundo”, porque a nota característica da vida consagrada é a profecia. […] Um religioso não deve jamais renunciar à profecia.»

Profecia e Missão

Convidaram-me para reflectir sobre o binómio profecia e missão talvez por ser missionário consagrado. Profecia, evangelho e esperança são as linhas com que se faz o tecido da consagração missionária. O Papa Francisco escreve na carta apostólica às pessoas consagradas: «Espero que “desperteis o mundo”, porque a nota característica da vida consagrada é a profecia. […] Um religioso não deve jamais renunciar à profecia.»

O papa argentino continua: «O profeta recebe de Deus a capacidade de perscrutar a história em que vive e interpretar os acontecimentos: é como uma sentinela que vigia durante a noite e sabe quando chega a aurora (cf. Is 21, 11-12). Conhece a Deus e conhece os homens e as mulheres, seus irmãos e irmãs. É capaz de discernimento e também de denunciar o mal do pecado e as injustiças, porque é livre, não deve responder a outros senhores que não seja a Deus, não tem outros interesses além dos de Deus. Habitualmente o profeta está da parte dos pobres e indefesos, porque sabe que o próprio Deus está da parte deles.»

Esta definição é o fio de pensamento da minha reflexão. Com uma ressalva: os consagrados não esgotam a missão profética da igreja; todos os baptizados participam do profetismo único e último de Jesus. A unção crismal depois do baptismo fá-los para sempre membros «de Cristo sacerdote, profeta e rei.»

JESUS: O PARADIGMA

O evangelista Lucas conta que Jesus fez a sua declaração de missão na sinagoga Nazaré, depois de ter sido baptizado por João no além-Jordão. 

Recordamos o texto: «Veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.” Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: “Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir”» (Lucas 4, 16-21).

Três versículos depois, Lucas conta que Jesus retorquiu aos conterrâneos que disputavam as suas credenciais: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria» (Lucas 4, 24). Jesus faz uma ligação transversal clara e inequívoca entre profetismo, Escrituras e o serviço aos pobres.

O profeta, porta-voz de Deus, tem que voltar repetidamente às Escrituras para aprender, viver e anunciar o sonho de Deus. Para ser sentinela de Deus, precisa dos ouvidos de discípulo para consolar o seu povo (Isaías 50, 4)!

Mais! O profeta de hoje reza as Escrituras numa leitura dialógica com os media. Deus continua a falar através de muitas outras palavras impressas, difundidas, digitais. 

POBRES, LUGAR TEOLÓGICO DA PROFECIA

Jesus, na declaração de missão em Nazaré, é claro: os pobres são o lugar teológico da profecia, não como conceito abstracto mas como espaço humano que o profeta tem que habitar. O profetismo de gabinete, asséptico, é só exercício intelectual. Os pobres são as periferias existenciais que as sentinelas de Deus vivem, perscrutam, patrulham.

Os pobres são gente real, de carne e osso. Não são nem conceitos sociopolíticos nem estatísticas de tabelas de cálculo. Têm rosto e nome como tu e eu. São gente sem recursos, desempregados, doentes, idosos, toxicodependentes, refugiados, sem-abrigo, traficados, escravizados, crianças, jovens, mulheres, migrantes… É neles que Jesus sofre hoje.

Os pobres são também os parceiros privilegiados de Deus, os donos do Reino (Lucas 6, 20b ) e os eleitos de Deus (Tiago 2,5). O salmista reza: «SENHOR, eu sei que defendes a causa do indigente e fazes justiça ao pobre» (Salmo 140, 13). E acrescenta: «Feliz daquele que cuida do pobre; no dia da desgraça, o SENHOR o salvará» (Salmo 41, 2). Paulo proclama que na sua bondade Jesus «sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Coríntios 8, 9).

ESTATÍSTICAS DA DESIGUALDADE

Permitam-me apresentar a realidade do mundo dos pobres através de algumas estatísticas sobre pobreza, riqueza extrema, desemprego, escravatura e infância.

Pobreza: O Banco Mundial calcula que mais de mil milhões de pessoas (cerca de 11% da população global) vivem em pobreza extrema com menos de 1,25 dólares americanos por dia (cerca de um euro). 

A EUROSAT indica que quase um quarto da população da União Europeia e 27,4% da população portuguesa vive no limite da pobreza e exclusão social. O Instituto Nacional de Estatística (INE) diz que 19,5% dos portugueses e 25,6% dos menores estão em risco de pobreza. O limiar da pobreza em Portugal está nos 4,90 euros.

Riqueza extrema: segundo a nota informativa Wealth: having it all and wanting more da ONG inglesa OXFAM, um por cento da população adulta é dona de 48% da riqueza mundial, deixando os restantes 52% para 99 % da população. Daqui a um ano esses 1% super-ricos vão ter mais de 50% da riqueza mundial.

Desemprego: de acordo com a OIT, a Organização Internacional do Trabalho, há 201 milhões de desempregados no mundo. Podem chegar aos 212 milhões em 2019. Em Portugal, a taxa de desemprego estimada para o quarto trimestre de 2014 foi de 13,5%, 698,3 mil pessoas sem trabalho, incluindo 11.044 casais.

Escravatura: 35,8 milhões de pessoas vivem alguma forma de escravidão que incluiu trabalho forçado, tráfico, casamento forçado e exploração sexual por dinheiro. Os dados são de Global Slavery Index que analisa há dois anos a escravatura moderna em 167 países. Portugal ocupa a posição número 157 da tabela com 1400 pessoas escravizadas. A escravatura gera 32 mil milhões de dólares por ano. Depois das drogas e das armas é a terceira actividade ilegal mais lucrativa

Infância: segundo a UNESCO, 58 milhões de crianças entre os 6 e os 11 anos não frequentam a escola. Desses, 15 milhões de meninas e 10 milhões de meninos provavelmente nunca irão à escola. O direito à educação é negado a uma em cada dez crianças. Por outro lado, a Organização Mundial do Trabalho diz que há 168 milhões de crianças-trabalhadoras e dessas 85 milhões fazem trabalhos perigosos. A UNICEF denuncia que cerca de dois milhões de crianças são afectadas pela exploração sexual cada ano. O negócio rende 20 mil milhões de dólares. Cerca de 250 milhões de meninas casaram-se antes dos 15 anos. 

Estes dados devem fazer-nos discernir as coordenadas do profetismo.

DIALÉTICA PROFÉTICA: DENUNCIAR E ANUNCIAR

«A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem consiste na visão de Deus», escreveu Ireneu de Lião no século II.

O profeta, porta-voz de Deus, é chamado a ser vidente, a discernir o presente, a linha entre a noite e o dia, o mal e o bem, num processo dialéctico de denúncia e anúncio: denúncia da má-nova dos poderes do Maligno, anúncio da boa-nova de que o reinado de Deus, «de justiça, paz e alegria» (Romanos 14, 17), já está entre nós (Lucas 17, 21).

O profeta denuncia a ordem económica iníqua que descarta as pessoas e as reduz a objectos de consumo, desrespeita o ambiente, ignora o bem comum e diviniza o ganho absoluto.

O profeta denuncia a cultura do individualismo narcisista globalizado, expresso no culto do auto-retrato (vulgo selfie). O euismo «favorece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade de vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos familiares» como escreve o Papa Francisco no n.º 67 da Evangelii Gaudium.

O profeta anuncia uma economia sustentável que respeita a dignidade da pessoa, o bem comum e a criação, a partilha e a compaixão, a mística do (re)encontro e da comunhão como o sonho de Deus para todos. Fá-lo através de uma espiritualidade de resistência cultural que propõe alternativas ao consumismo e ao individualismo através de vidas sóbrias, solidárias e saudáveis.

Deus criou-nos para sermos co-criadores (Salmo 8, 5-7). A economia que reduz a pessoa a consumidora não é economia de Deus. É provável que muitas das neuroses que afectam a sociedade contemporânea venham da impossibilidade de as pessoas cumprirem a capacidade criativa e criadora com que Deus as abençoou. 

Somos infelizes porque não criamos, não produzimos; só consumimos, compramos.

A falácia de um crescimento económico constante é uma aberração que está a levar ao crescimento espiriforme da produção e consequente consumo de matérias-primas e poluição. A Terra não tem capacidade para regenerar as feridas da sobreexploração dos recursos e decompor os resíduos. Daí o inexorável inquinamento dos solos, subsolos, água e ar que alteram o clima e a dificultam a vida sobretudo aos mais pobres.

É tempo de assumir sem falsas defesas pseudocientíficas que o consumismo tem um preço humano, climático e ecológico demasiado elevado para ser sustentável. 

A cultura do usa e deita fora é responsável pelo trabalho (quase) escravo em países de mão-de-obra barata e pelo desemprego de longa duração em países desenvolvidos. A Organização Mundial do Trabalho denuncia que pessoas escravizadas produzem pelo menos 122 artigos em 58 países. O trabalho ilícito gera pelo menos 150 mil milhões de dólares por ano.

O consumo exagerado tem outros custos humanos: 11% da população mundial passa fome apesar de a produção mundial rondar as 4600 quilocalorias por dia por cabeça. Uma alimentação saudável precisa de 2500 quilocalorias por dia por pessoa. 

A sobreprodução está a causar danos ecológicos irreparáveis incluindo erosão, poluição, desaparecimento de espécies, episódios climáticos extremos e esquecimento global.

Esta escola católica de ensino terciário é famosa pela sua faculdade de economia e gestão e orgulha-se de ter a melhor business school do país. Impõe-se perguntar se a economia que aqui aprende é amiga dos pobres ou dos ricos, se segue o dividir da economia de Deus ou o multiplicar da economia do grande capital como método para gerar riqueza. A exortação apostólica Evangelii Gaudium é uma ferramenta importante para aferir o que se ensina nas faculdades de economia e de teologia.

INTERNET: PRAÇA DE PROFETAS

A Internet veio revolucionar as comunicações transformando o mundo numa malha apertada de pessoas com cerca de 3000 milhões de utentes em 2015. Estamos à distância de um clique, de um «Gosto» mas há mais comunicação digital para além das redes sociais.

A Internet transformou o mundo numa aldeia global. Sabemos o que se passa em tempo real no Chade ou na China, na Polónia ou no Peru, talvez melhor do que na nossa rua, na nossa aldeia.

Comunicamos tanto e vivemos tão sozinhos.

Contudo, a rede mundial é uma teia de cumplicidades e afectos que pode constituir um compromisso colectivo para o cuidado de todos, sobretudo dos membros mais pobres e fracos. 

Na perspectiva cristã, os elos mais fracos da sociedade são também os mais necessários: «Quanto mais fracos parecem ser os membros do corpo, tanto mais são necessários, e aqueles que parecem ser os menos honrosos do corpo, a esses rodeamos de maior honra, e aqueles que são menos decentes, nós os tratamos com mais decoro» (1 Coríntios 12, 22-23).

A net pode transformar os muros sociais, culturais, económicos e religiosos em pontes de encontro através de pequenos gestos solidários de comunhão e cuidado, de vidas mais verdes e baratas, de respeito pela pessoa, sobretudo pelas minorias, da partilha de estórias, de factos e de preocupações para chegarmos a uma consciência mais global, a uma nova ordem nas relações humanas.

A net é uma praça propícia para propor a liberdade, democracia, direitos humanos, paz, igualdade do género, educação, saúde, trabalho como bens comuns não negociáveis.

PROFETAS DAS GRAÇAS

O Papa João XXIII no discurso de abertura solene do Concílio Vaticano Segundo denunciou com um sorriso bondoso os «profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo.» 

E acrescentou: «Na ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência está-nos levantando para uma ordem de relações humanas que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para o bem da Igreja.»

Junto outra citação da Carta Apostólica do Papa Francisco às pessoas consagrada: «Às vezes, como aconteceu com Elias e Jonas, pode vir a tentação de fugir, de subtrair-se ao dever de profeta, porque é demasiado exigente, porque se está cansado, desiludido com os resultados. Mas o profeta sabe que nunca está sozinho. Também a nós, como fez a Jeremias, Deus assegura: “Não terás medo (...), pois Eu estou contigo para te livrar”.»

Termino com esta nota de esperança, a nós, discípulos missionários, que somos chamados a ser profetas das graças de Deus, a proclamar as suas maravilhas em todas as línguas – incluindo a digital – para viver juntos uma cultura que seja epifania do sonho de Deus para todos.

Obrigado!
P. José da Silva Vieira
Superior provincial dos Missionários Combonianos, em Portugal

Reflexão apresentada no painel sobre a profecia das XXXVI Jornadas de Estudos Teológicos da Universidade Católica Portuguesa