Segunda-feira, 19 de Fevereiro de 2018
A comissão organizadora da XXXIII Semana de Estudos da Vida Consagrada que decorreu em Fátima de 10 a 13 de Fevereiro de 2018 sob o tema «Inovar na Vida Consagrada – Para vinho novo, odres novos (Mc 2,22)» convidou o P. José da Silva Vieira, provincial dos combonianos em Portugal e Presidente da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal, a desenvolver o tema «O novo rosto da autoridade». “O novo rosto da autoridade – afirma o missionário comboniano – não se consegue através de uma campanha massiva de cirurgias plásticas já que um grande número de pessoas em autoridade é entrado nos anos. Faz-se, sim, através de um transplante, da cordialidade: os novos corações da autoridade. As consagradas e consagrados em autoridade são desafiados a servir com coração.”
O NOVO ROSTO DA AUTORIDADE
NA VIDA CONSAGRADA
P. José da Silva Vieira, MCCJ
Convidaram-me para explorar «O novo rosto da autoridade na vida consagrada» à luz do tema «Inovar na vida consagrada».
Novo rosto? O novo rosto da autoridade não se consegue através de uma campanha massiva de cirurgias plásticas já que um grande número de pessoas em autoridade é entrado nos anos. Faz-se, sim, através de um transplante, da cordialidade: os novos corações da autoridade. As consagradas e consagrados em autoridade são desafiados a servir com coração.
É este o transplante que Deus propõe ao querer mudar corações petrificados em corações encarnados. O Senhor prometeu pela boca do profeta: «Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne»[1]. Daí que eu gostava de chamar a esta reflexão «Os novos corações da autoridade na vida consagrada».
Uma nota: esta partilha não é um exercício teórico; é uma reflexão em voz alta a partir da minha experiência no serviço da autoridade como superior de comunidade em Lisboa e Juba, conselheiro provincial em Portugal, vice-provincial no Sudão do Sul e provincial em Portugal e de 35 anos de obediência professa.
TRÍPTICO BÍBLICO
A bíblia apresenta muitos e diversos quadros sobre o serviço da autoridade, sobre a arte do mando. Evoco três ícones para enquadrar esta reflexão ao jeito de um tríptico:
1. Juízes 9, 8-15: «As árvores puseram-se a caminho para ungirem um rei para si próprias. Disseram, então, à oliveira: “Reina sobre nós.” Disse-lhes a oliveira: “Irei eu renunciar ao meu óleo, com que se honram os deuses e os homens, para me agitar por cima das árvores?” As árvores disseram, depois, à figueira: “Vem tu, então, reinar sobre nós.” Disse-lhes a figueira: “Irei eu renunciar à minha doçura e aos meus bons frutos, para me agitar sobre as árvores?” Disseram, então, as árvores à videira: “Vem tu reinar sobre nós.” Disse-lhes a videira: “Irei eu renunciar ao meu mosto, que alegra os deuses e os homens, para me agitar sobre as árvores?” Então, todas as árvores disseram ao espinheiro: “Vem tu, reina tu sobre nós.” Disse o espinheiro às árvores: “Se é de boa mente que me ungis rei sobre vós, vinde, abrigai-vos à minha sombra; mas, se não é assim, sairá do espinheiro um fogo que há-de devorar os cedros do Líbano!”.»
2. Lucas 12, 42-46: Disse Jesus: «Quem será, pois, o administrador fiel e prudente a quem o senhor pôs à frente do seu pessoal para lhe dar, a seu tempo, a ração de trigo? Feliz o servo a quem o senhor, quando vier, encontrar procedendo assim. Em verdade vos digo que o porá à frente de todos os seus bens. Mas, se aquele administrador disser consigo mesmo: “O meu senhor tarda em vir” e começar a espancar servos e servas, a comer, a beber e a embriagar-se, o senhor daquele servo chegará no dia em que ele menos espera e a uma hora que ele não sabe; então, pô-lo-á de parte, fazendo-o partilhar da sorte dos infiéis.»
3. Mateus 23, 8: Jesus disse: «Quanto a vós, não vos deixeis tratar por 'mestres', pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos.»
Estes três ícones bíblicos dão outras tantas indicações preciosas:
1. Primeiro: o serviço da autoridade não é um ato de vaidade, um «agitar-se por cima dos outros». Faz-me espécie ver consagradas e consagrados em bicos de pés durante os processos de escolha de superiores, maiores ou não.
Depois, o serviço da autoridade tem custos pessoais, renúncias concretas. Nesta parábola antimonárquica a oliveira, a figueira e a videira não querem renunciar aos seus frutos para se pavonearem sobre as outras árvores.
Por outro lado, o espinheiro quer dar sombra com os seus espinhos; ou fogo se houver má-fé por parte das árvores que o elegeram para reinar sobre elas.
Por outro lado, esta parábola parece sublinhar a dificuldade de encontrar gente com qualidade disponível para servir. É uma experiência feita repetidamente por pessoas em situação de liderança.
Mais ainda, há pessoas que planeiam a própria vida em termos de carreira e estão sempre prontas para o degrau seguinte. Recordo que alguém me deu os parabéns pela carreira quando fui eleito presidente da CIRP. Respondi que prefiro o comboio: é mais confortável, apesar de ser ligeiramente mais caro!
2. Os que exercem autoridade são administradores fiéis e prudentes, escolhidos para alimentar aqueles que lhes foram confiados: não são donos, mas mordomos. Não exercem o serviço para proveito próprio mas cuidam, dão alimento. São alimento.
O Senhor agracia-nos (com o estado de graça) para desempenhar o serviço. Fomos escolhidos através do discernimento das coirmãs e dos coirmãos: a autoridade foi-nos conferida, não é privada ou unipessoal, intransmissível; é temporal; é a soma de todas as liberdades postas nas nossas mãos através do voto electivo para
A Regra de Vida do meu instituto diz que «este serviço é prestado à comunidade e a cada membro para o ajudar a viver segundo a sua consagração e a desenvolver os seus carismas e dons pessoais no serviço missionário.»[2] Alimentar – mais que dar comida – é aceitar ser «comida» para as coirmãs e coirmãos. A bondade e o amor são os manjares na mesa posta pelo pastor bom e belo.[3] Aceitar ser comida é ser bondade e amor para os outros.
3. Somos todos irmãos e irmãs. Este foi o primeiro nome pelo qual os cristãos se trataram entre si. O termo está amplamente documentado nas cartas de Paulo.
A fraternidade e a sororidade são o chão raso sobre o qual construímos toda a vida cristã incluindo o serviço da autoridade que rima com bondade, ao jeito de Deus: «Mas Tu, que dominas a tua força, julgas com bondade e nos governas com grande indulgência»[4].
O Senhor quer-nos bons e indulgentes para com todos, ajudando-os a serem fiéis ao sonho de Deus a seu respeito com ternura e misericórdia. Esta visão esbarra com o adágio comum entre consagrados que os superiores tender a ser fortes com os fracos e fracos com os fortes!
VINHO NOVO, ODRES NOVOS
A Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica publicou a 6 de Janeiro de 2017 as Orientações intitulas Vinho novo, odres novos – a vida consagrada desde o Vaticano II e os desafios ainda em aberto.[5]
O documento, classificado na introdução como «um exercício de discernimento», passa em revista o caminho feito pela vida consagrada desde o Vaticano II para «ler práticas inadequadas, indicar processos bloqueados, fazer perguntas concretas, pedir razões das estruturas de relação, de governo e de formação sobre o apoio real dado à forma de vida evangélica das pessoas consagradas [e] levar a cabo mudanças, mediante acções concretas a breve e longo prazo.»[6]
O serviço da autoridade e os modelos relacionais encontram-se entre os desafios ainda em aberto na vida consagrada (n.ºs 19-24). O diagnóstico é complexo: sublinha a tensão entre autoridade centralizada nas cúpulas e o princípio da subsidiariedade e da autonomia governativa; autoritarismo, pessoalização da autoridade pondo de lado as estruturas de conselho na governação; desrespeito pelas decisões capitulares; «ausência de delegações convenientes»; grupos de poder que detêm a capacidade de decidir; «episódios e situações de manipulação da liberdade e da dignidade das pessoas» reduzindo-as à dependência total e ao infantilismo; clericalização da vida consagrada com os consagrados-padres a dedicam-se mais ao ministério que à da comunidade.
A resposta a estes desafios abertos encontra-se no «espírito de Cristo que não veio para ser servido mas para servir, […] o Jesus servo que lava os pés aos seus discípulos para que tenham parte na sua vida e no seu amor»;[7] na renúncia generosa a todo o tipo de privilégios e esquemas obsoletos para poder «abrir novos horizontes e possibilidades no governo, na vida comum, na gestão dos bens e na missão».[8]
As Orientações indicam algumas mudanças concretas no exercício da autoridade. Advogam a alternância no governo para parar a perpetuação em certos cargos, sobretudo nas congregações femininas; manifestam a percepção de que «a própria terminologia de “superiores” e “súbditos” já não é adequada»;[9] a relação piramidal e autoritária tem que dar lugar ao discernimento comunitário circular e à «obediência criativa» baseada na fraternidade evangélica.
A III Parte do documento intitulada «Preparar odres novos» preconizada novas práticas à luz da vida de Jesus.
Os n.ºs 38 a 54 tratam do caminho para a relacionalidade evangélica. Começa por sublinhar os processos multiculturais nos institutos – sobretudo femininos –, consequência da internacionalização das famílias de consagrados. Pede uma mudança de atitude «da centralidade do papel da autoridade à centralidade dinâmica da fraternidade»[10], ao serviço da comunhão: «um verdadeiro ministério para acompanhar os irmãos e as irmãs até uma fidelidade consequente e responsável.»[11]
Esta proposta vê o exercício da autoridade a partir da «partilha responsável de um projecto comum»[12], «um serviço de autoridade que apele à colaboração e a uma visão comum sobre o estilo da fraternidade»[13] para além do autoritarismo e a autoridade privada que geram situações de conflito e contencioso.
As Orientações falam de uma rotação necessária da autoridade e «reposição de gerações»[14] no exercício da mesma. Este ponto é também válido para a eleição dos delegados aos capítulos – que deve ter em conta a nova geografia que «tem vindo a redesenhar novos equilíbrios culturais na vida e no governo dos institutos»[15] – e exige a iniciação aos cargos de responsabilidade. Este é um dado importante: preparar as novas gerações de consagradas e consagrados para o serviço da autoridade.
AUTORIDADE DIACONAL
O exercício da autoridade ao jeito de Jesus é um serviço que tem que ser cada vez mais sinodal: um caminhar juntos, partilhado, próximo e afetivo para empoderar as pessoas a viverem plenamente a sua vida e a sua vocação inseridas num projeto de vida fraterna comum.
Sinodalidade. O Papa Francisco é um modelo interessante de sinodalidade e proximidade afetiva que está a fazer escola. Até Marcelo Rebelo de Sousa o segue na presidência dos afetos. A palavra sínodo é formada a partir de duas palavras gregas: syn=juntos e hodos=caminho. Sinodalidade indica «caminho juntos». Não é possível desempenhar o serviço da autoridade à distância, a partir do conforto do escritório ou no resguardo do título. Sendo irmãs e irmãos que caminhamos juntos temos que nos fazer próximos uns dos outros, uma proximidade afectiva, cordial e humana.
A caminhada para Emaús, «a mais bela viagem de doze quilómetros de toda a Escritura»[16] pode dar algumas indicações para este caminhar juntos. Sublinho duas:
Proximidade. Jesus, com o seu jeito amigo e próximo, democratizou a amizade divina. No Antigo Testamento só Abraão[18] e Moisés[19] foram chamados amigos de Deus.
O Mestre de Nazaré disse aos discípulos e diz a cada um de nós: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai». [20]
Chamar amigos significa dar a conhecer, partilhar informação para empoderar as pessoas para ajuizarem situações ou factos, exercerem o discernimento, uma palavra tão jesuíta que o Papa Francisco recuperou. Esta atitude de Jesus vai contra o secretismo com que por vezes se exerce o ministério da autoridade.
Fazer da amizade o modo da autoridade quer dizer deixar o resguardo da comunicação oficial através de cartas com cabeçalho e dos pombos-correios que usamos para enviar mensagens para assumir o desafio de uma autoridade de proximidade, descobrindo e acreditando na força revolucionária da ternura e do afeto.[21]
O Papa está a recuperar o poder da ternura na vida das pessoas: ela aproxima, facilita a mística do encontro. Diz o povo que não se apanham moscas com vinagre. É verdade! A ternura é um dado importante para o serviço da autoridade cordial. «Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos», escreve Antoine de Saint-Exupéry.[22] A ternura é uma postura teologal fundamental em qualquer exercício de discernimento e um olhar mais profundo da realidade.
Os psicólogos estudam cada vez mais a inteligência cardíaca,[23] a inteligência do coração. Porque o coração também pensa. A máxima kantiana de penso logo existo deve dar lugar a uma visão mais abrangente: amo logo existo. A sabedoria das Escrituras Judaicas explica: «Meu filho, dá-me o teu coração, e os teus olhos se comprazam nos meus caminhos.»[24]
Empoderamento. «A glória de Deus é o homem vivo»[25] como tão bem expressou Santo Ireneu de Lião. O exercício da autoridade deve levar a vivificação das pessoas, de quem está no mando e de quem obedece.
Uma monja carmelita amiga disse-me: «Entre nós não há superioras, há madres». O serviço da autoridade é um modo de exercer a maternidade e paternidade que trazemos inscritas em cada célula do nosso ser: dar vida aos que se submetem à autoridade através do seu voto eletivo. O exercício da autoridade não pode ser um dedo em riste castrante, uma súmula de interditos. Tem que ajudar os coirmãos e as coirmãs a serem mais, a serem melhor, para que tenham vida e a vida em plenitude.[26] Essa é a missão de Jesus, a missão que partilha connosco.
Delegação. Podemos aprender algo muito importante com Jetro, o sogro de Moisés, no exercício da autoridade.
O líder da comunidade do êxodo andava tão estafado a resolver todas as situações no acampamento do Sinai que nem tempo tinha para comer ou dormir. Jetro, homem de grande olho e sabedoria, ao ver a situação do genro, pergunta a Moisés: «O que é isso que tu fazes pelo povo? Por que razão te sentas tu sozinho, e todo o povo fica junto de ti de manhã até à noite? Não está bem aquilo que estás a fazer. Com certeza desfalecerás, tu e este povo que está contigo, porque a tarefa é demasiado pesada para ti; não poderás realizá-la sozinho. Agora, escuta a minha voz; vou dar-te um conselho, e que Deus esteja contigo! Tu estarás em nome do povo em frente de Deus, e tu próprio levarás as causas a Deus. Adverti-los-ás dos preceitos e das instruções e dar-lhes-ás a conhecer o caminho que devem seguir e as obras que devem praticar. Escolhe tu mesmo entre todo o povo homens capazes, tementes a Deus, homens íntegros, que odeiem o lucro ilícito, e estabelecê-los-ás como chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinquenta e chefes de dez. Eles julgarão o povo em todo o tempo. Toda a questão que seja grande, eles a apresentarão a ti, mas toda a questão menor, julgá-la-ão eles mesmos. Torna assim mais leve a tua carga, e que eles a levem contigo. Se fizeres desta maneira, e se Deus to ordenar, tu poderás permanecer de pé, e também todo este povo entrará em paz nas suas casas.»[27]
Palavras sábias: «Com certeza desfalecerás, tu e este povo que está contigo. […] Torna assim mais leve a tua carga, e que eles a levem contigo.» Os conselheiros gerais e provinciais servem para isto mesmo: para aligeirar o peso do serviço da autoridade. Delegar parte do serviço da autoridade faz com que não andemos como baratas tontas de um lado para o outro a tentar apagar todos os fogos e … a ateá-los ainda mais!
Liberdade. Quando iniciei o meu serviço como provincial escrevi: «Sei que a autoridade de que fui investido representa a soma de todas as liberdades postas nas minhas mãos através do vosso voto».[28]
Quem está em autoridade tem nas próprias mãos «a gloriosa liberdade dos filhos de Deus»[29], uma liberdade que Deus respeita plenamente, o dom maior que Deus nos fez. Não se pode brincar com a «gloriosa liberdade» dos outros.
Os que aceitam o serviço da autoridade devem recordar constantemente a palavra de Paulo aos cristãos da Galácia: «Irmãos, de facto, foi para a liberdade que vós fostes chamados.»[30]
Modelos de autoridade. A Igreja e a sociedade civil afetam-se mutuamente na busca de modelos de governo. Ao longo da história houve um diálogo interessante e intenso, mas a Igreja a certo ponto ficou para trás, encantada com as seguranças do absolutismo monárquico, que canonizou.
A Igreja, a comunidade discernente dos crentes, tem que passar do modelo da monarquia (absoluta) em que parece ter cristalizado para uma sinarquia, uma liderança colectiva à volta de um projecto comum de fraternidade e missão. A colegialidade que está na origem das conferências episcopais é um primeiro e tímido passo em direcção a essa mudança.
No princípio, a autoridade da Igreja estava nas mãos dos patriarcas. O bispo de Roma era reconhecido como primeiro entre iguais. A autoridade era colegial. Por outro lado, há grandes páginas de democracia participativa na história da Igreja – recordo a eleição do catecúmeno Ambrósio para bispo de Milão – que nos impelem para um processo decisório mais aberto e participado e menos opaco e tortuoso.
O Papa escreve em A alegria do Evangelho que se pode ir mais longe: «no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade.»[31]
Discernimento. Na minha juventude, o pedido de uma maior participação no processo decisório na Igreja esbarrava quase sempre com o refrão estafado de que a Igreja não era uma democracia.
Sim, podemos dizer que a Igreja não é uma democracia, mas é uma comunidade que discerne junta a vontade de Deus, porque o Espírito Santo é dado a todos os baptizados.[32] Este discernimento tem que ser um exercício constante para ler os sinais dos tempos e descobrir os caminhos que Deus propõe através desses sinais.
Os capitulares combonianos de 2015 escreveram: «os princípios que nos inspiram no discernimento para chegar a decisões comuns são a colegialidade, subsidiariedade, corresponsabilidade, interacção entre as circunscrições e uma liderança partilhada».[33] Temos aqui os elementos que fazem a gramática da autoridade renovada.
Ligada ao discernimento está a capacidade e a necessidade de decidir, de tomar decisões. Não se pode procrastinar, adiar decisões até ao Julgamento final. O consagrado em autoridade não pode impor, das deve ajudar a assumir.
No processo de discernimento a questão fundamental a resolver é entender o que é que Deus quer de nós e de cada um de nós. O papel do serviço da autoridade é ajudar os coirmãos e coirmãs a ir mais longe no cumprimento do projeto de Deus, a fazer a sua vontade no contexto da comunidade. Nessa busca comum há também a dimensão do desafio a ir mais longe. Vai aos jogos olímpicos quem consegue os mínimos estabelecidos. Na vida consagrada é diferente: tenta-se maximizar a graça recebida com a vocação/missão de cada um. Daí que a autoridade tenha que desafiar as e os consagrados não para os mínimos mas para os máximos da sua vida e missão!
Designação. As Orientações da Congregação para a os Institutos de Vida Consagrada e as sociedades de vida apostólica declaram que o binómio superior-súbdito está ultrapassado.[34] Entendo que as designações superior e súbdito pressupõem uma relação assimétrica de poder que contrasta com a visão de autoridade como serviço.
O Código de Direito Canónico consagrou o termo superior/superiora para designar quem governa.[35] Mas não é a única designação. Os franciscanos têm o ministro-geral e o guardião, os salesianos o reitor-mor e o director, os dominicanos mestre-geral e o prior… Isto para mencionar alguns grupos masculinos que – imagino – não esgotam a riqueza de designações do ministro da autoridade.
Coordenador, facilitador, animador podem também ser termos viáveis para quem está em autoridade. Reconheço, contudo, que não é fácil sair-se do círculo dos termos em uso. Na direção da CIRP tentámos encontrar uma alternativa para a designação «superiores maiores» e fomos mal sucedidos.
PONTAS SOLTAS
O exercício da autoridade marca-nos como um ferrete, muda algumas percepções para o bem ou para o mal. Depende da orientação que lhe queiramos dar.
Da primeira vez que fui eleito conselheiro provincial não aceitei o segundo mandato, porque fiquei a saber coisas que era muito melhor que não soubesse. Às vezes é difícil lidar com o lado escondido de alguns coirmãos.
Através do ministério da autoridade vivido como superior, conselheiro, vice-provincial e provincial aprendi algumas dimensões que quero partilhar com vocês e que podem fazer parte da plástica dos novos rostos da autoridade:
Jesus ensina-nos a servir e a dar a vida. O único paramento que usou na sua vida foi uma toalha atada à cintura para lavar os pés dos discípulos durante a última ceia.[40] E foi com a toalha à cintura que foi para a paixão, porque João não diz que Jesus a tirou, mas que pôs de novo o manto.[41]
Este modelo é também um alerta contra o carreirismo: «não deve ser assim entre vós.» Por isso Jesus faz a leitura interpretativa do lava-pés nestes termos: «Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também. Em verdade, em verdade vos digo, não é o servo mais do que o seu Senhor, nem o enviado mais do que aquele que o envia. Uma vez que sabeis isto, sereis felizes se o puserdes em prática.»[42]
Juntei sofredor ao ícone do Jesus-servo para sublinhar outro ponto importante: a autoridade (e a obediência) dói, fere. O padre José Tolentino Mendonça nota que «a opção por seguir Jesus não nos poupa ao sofrimento: dá-nos a capacidade de o viver na confiança.»[43]
O autoritarismo é um modo equivocado de exercer a autoridade que faz muitos estragados. E a vã glória de mandar pior ainda. Antoine de Saint-Exupéry nota com sabedoria: «se o indivíduo se exalta na própria importância, em breve o caminho se converte em parede».[44] A misericórdia a humildade são uma terapia eficaz para curar a doença do autoritarismo ou da autoridade mal parada!
Por outro lado, o exercício a autoridade também fere quem manda. Somos nativos da cultura actual onde «o individualismo pós-moderno e globalizado oferece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos familiares».[45] A autonomia tão reclamada hoje é o outro nome do pecado original. Torna-se cada vez mais complicado exercer o serviço da autoridade a favor de um projeto de vida comum e comunitário numa cultura individualista. E quem manda, muitas vezes também sofre e fica ferido. O poder curativo do rezar uns pelos outros é o remédio genérico muito efetivo e barato. Tiago exorta: «orai uns pelos outros para serdes curados. A oração fervorosa do justo tem muito poder.»[46] Mais efetiva do que criticar e falar uns dos outros.
A humildade e a mansidão de coração também ajudam a curar as feridas da autoridade mal exercida, aceitando o convite de Jesus que diz «Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito.»[47]
A figura evangélica de Jesus o bom pastor do coração trespassado – urdida a partir do capítulo décimo de São João – funciona como outro grande modelo de governo e do exercício da autoridade. O pastor vai à frente, indica o caminho. Quando eu era miúdo e ia com as ovelhas, ia atrás e guiava o pequeno rebanho com alguns berros, um pau e às vezes à pedrada! Não é o que se espera de um pastor. Se mando e não faço o outro pode muito bem dizer: «Vai tu!»
GRAMÁTICA DA AUTORIDADE CORDIAL
Podia ter preparado esta intervenção, vasculhando livros e artigos sobre o novo rosto da autoridade na vida consagrada e apresentar um texto liso e coado sobre o tema. Mas não é esse o meu estilo nem o meu interesse.
Preferi partir da minha experiência revisitada de autoridade e de obediência ao jeito de Maria de Nazaré «que conservava todos estes acontecimentos, compondo-os em seu coração»[49] como traduz Dom António Couto, bispo de Lamego. Esta apresentação foi mais em jeito de partilha do que uma lição teórica – para a qual não me sinto nem preparado nem motivado.
E deixo um desafio: vamos viver a autoridade cordial através de uma gramática mais criativa, próxima e terna. E reaprender a viver sob o olhar misericordioso de Deus e de cada coirmã e coirmão com quem partilhamos a vocação, a missão, a vida e o pão.
Obrigado.
[1] Exequiel 36, 26.
[2] Missionários Combonianos do Coração de Jesus: Regra de Vida 102.
[3] Salmo 23, 6.
[4] Sabedoria 12, 18.
[5] Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica: Vinho novo, odres novos – a vida consagrada desde o Vaticano II e os desafios ainda em aberto. Refiro o documento como Orientações.
[6], Orientações, introdução.
[7] Idem, 21.
[8] Idem, 22.
[9] Idem, 24.
[10] Idem, 41.
[11] Idem, 41.
[12] Idem, 42.
[13] Idem, 43.
[14] Idem, 46.
[15] Idem, 53.
[16] D. António Couto: Quando Ele nos abre as escrituras domingo após domingo: Uma leitura bíblica do Lecionário Ano A, página 117.
[17] Evangelii gaudium, nº 174.
[18] Isaías 41, 8; Tiago 2, 23.
[19] Exodo 33, 11.
[20] João 15, 15.
[21] Cf. Papa Francisco: A alegria do Evangelho, nº 288.
[22] Antoine Saint-Exupéry: O pequeno príncipe.
[23] https://juvenil.net/index.php/crescer/412-inteligencia-cardiaca-o-que-e-isso.
[24] Provérbios, 23, 26.
[25] https://communioscj.wordpress.com/2011/04/18/%E2%80%9Ca-gloria-de-deus-e-o-homem-vivo-e-a-vida-do-homem-consiste-na-visao-de-deus%E2%80%9D-ireneu-de-liao-contra-as-heresias-iv-20-7-1-por-diac-daniel-scj/.
[26] Cf. João 10, 10.
[27] Êxodo 18, 14. 17-23.
[28] Diálogo n.º 128, Janeiro-Março 2014, página 4.
[29] Romanos 8, 21.
[30] Gálatas 5, 13.
[31] Evangelii gaudium 246.
[32] Ver Actos 2, 28.
[33] Missionários Combonianos do Coração de Jesus: Documentos Capitulares 2015, n.º 41.
[34] Vinho novo, odres novos – a vida consagrada desde o Vaticano II e os desafios ainda em aberto, 24.
[35] Código de Direito Canónico, Cânone 617.
[36] 1 Tessalonicenses 1, 2.
[37] Romanos 13, 1.
[38] Orientações, 21.
[39] Marcos 10, 42-45.
[40] João 13, 4.
[41] João 13, 12.
[42] João 13, 14-17.
[43] José Tolentino Mendonça: A mística do Instante.
[44] Antoine de Saint-Exupéry: Piloto de Guerra.
[45] Papa Francisco: A alegria do Evangelho, 67.
[46] Tiago 5, 16.
[47] Mateus 11, 28-29.
[48] José Tolentino Mendonça: O pequeno caminho das grandes perguntas, página 165.
[49] Lucas 2, 19.