Sábado, 16 de Agosto de 2014
O título que escolhi para esta reflexão – escreve o P. Manuel Augusto Lopes Ferreira (na foto), superior geral dos Missionários Combonianos de 1997 a 2003 – tem algo de provocador: os Capítulos Gerais, de facto, não falham na sua missão de “suprema autoridade do Instituto” (RV 146), se os entendemos como eventos do Espírito e os recebemos com uma atitude de fé. Presumo que assim é, com todos os capítulos e com todos nós, na recepção que deles fazemos, tanto a nível pessoal, como provincial e de instituto.

 

P. Manuel Augusto L. Ferreira,
foi superior geral
dos Missionários Combonianos
de 1997 a 2003.

Uma leitura atenta dos documentos dos últimos capítulos (2009, 2003, 1997, 1991...) mostra que muitas orientações, propostas, decisões dos mesmos ficaram sem efeito, sem implementação. Se olharmos para o lado da recepção dos capítulos e das suas orientações não podemos deixar de observar que os capítulos gerais mais recentes ficaram muito aquém do que propuseram para a renovação do instituto.

1.- Encurtar distância

Nos documentos dos últimos capítulos, a proposta de orientações aos mais variados níveis, de carisma (RV 1-19), de espiritualidade e vida em fraternidade (RV 20-55), de teologia e visão missionária, do nosso serviço missionário nas suas várias dimensões (RV 56-108, de organização (RV 102-159), superaram em muito a realização concreta que se veio a operar no instituto, nas províncias e nas comunidades. Neste sentido poderíamos dizer que, de alguma maneira, “falharam”, eles e o instituto na sua recepção e aplicação.

Naturalmente não basta dizer que falharam, é preciso perguntarmo-nos porquê, para percebermos os dinamismos porque passamos nos capítulos gerais e, eventualmente, melhorarmos a nossa recepção dos capítulos e encurtarmos a distância entre os elementos propositivos dos capítulos e a recepção concreta a nível pessoal, comunitária, de província e instituto.
No passado, houve esforços para entender esta situação, para perceber porque ficam sem se realizar muitas orientações dos capítulos, o que isso significa para o Instituto e que consequências possa ter. Creio que o Pe Tarcísio Agostoni estudou alguns capítulos e que o Pe Francisco Pierli também se debruçou sobre este tema da falta de implementação das orientações capitulares. Não sou, por isso, o primeiro a escrever sobre o assunto. Mas, no momento em que escrevo, não tenho disponíveis esses textos. Escrevo, por isso, esta minha reflexão sem pretensões, só a partir da leitura dos textos dos últimos quatro capítulos e das minhas intuições pessoais, perfeitamente discutíveis, mas que proponho em espírito de partilha fraterna e de busca de respostas, tendo em vista o próximo capítulo geral de 2015.

2.- Abundância de propostas

Quem, de fora, se der ao trabalho de ler os documentos capitulares dos nossos últimos capítulos fica, certamente, surpreendido pela abundância de temas, questões abordadas, de propostas e indicações feitas. Se os comparar com os documentos saídos das Congregações Gerais dos Jesuítas, por exemplo, não ficará impressionado pela qualidade teológica e nível espiritual e apostólico dos nossos. Os nossos documentos dos capítulos gerais mais recentes são documentos mais bem práticos, sem asas por voarem (e nos fazerem voar!) por âmbitos mais altos de teologia, bíblia, missiologia, eclesiologia, espiritualidade.

Nós combonianos, que estamos por dentro dos processos como os documentos foram feitos, ao lê-los não podemos deixar de advertir os elementos de improvisação, de pressa, a preocupação de dizer uma palavra sobre tudo, ao sabor da moda do momento que vivemos. Não podemos deixar de advertir o desejo dos capitulares de dizerem a sua sobre todos os (pretensos) problemas das províncias e do instituto. E não podemos deixar de indicar, como razão que nos conduziu a esta situação, o facto de, nalguns dos últimos capítulos, os capitulares terem rejeitado o trabalho de preparação feito, os documentos preparatórios que traziam ao capítulo o sentir mais alargado do instituto.

Os documentos do capítulo de 2009, por exemplo, passeiam-se por questões de Identidade, Espiritualidade, Missão, Formação, Governo, Formação Permanente, Economia e Missão, Terceira Idade e Doença, Animação Missionária (cada título corresponde a um documento e no meio de tanta oferta, o próprio capítulo sentiu a necessidade de indicar as prioridades, nada menos que 14!), num texto extenso, que tem mais números (195) do que a Regra de Vida.

Os documentos do capítulo de 2003 aparecem um pouco mais comedidos nas questões abordadas (No mundo com os olhos e o coração de Comboni, Missão Comboniana hoje, Formação Permanente, Comunidade Comboniana, Metodologia Missionária, Elementos da Programação). Mas, os capitulares não desistiram de incluir nos textos as indicações práticas e os documentos perderam altura e voaram rasteiro, oferecendo-nos uma leitura quebrada por imensos números com indicações práticas para quase toda a vida do instituto (os números aproximam-se dos da Regra de Vida, mas a qualidade do texto e a sua pertinência estão longe dela).

Os documentos do capítulo de 1997, na sua complexidade de temas, aparecem algo mais integrados, ao encontrar na “missão” o elemento unificador dos vários temas tratados (Partir da Missão, Missão é Inculturação e Diálogo, Missão é Colaboração, Missão é Animação Missionária, Missão é Empenho pela Justiça e pela Paz, Missão é Atenção à Pessoa, Missão é Serviço de Autoridade, Missão é Partilha dos Bens). Também aqui, o texto na sua prolixidade inclui muitas indicações práticas e aparece com mais números (199) que a Regra de Vida.

3.- Passivo de carisma

Este carácter minucioso e prático dos documentos parece revelar uma preocupação dominante nos últimos capítulos: “impor um estilo” (a nível de vida comunitária, de metodologia missionária, de espiritualidade, de formação, de economia e governo, etc). É o caso para perguntar: não seria melhor repropor, levantar bem alto o carisma missionário comboniano, fazer emergir a sua beleza no hoje da Igreja e da sociedade e deixar que os indivíduos, as comunidades e as províncias tirem as conclusões para a sua vida?! É essa visão motivadora, profética, pró-activa do carisma que nos tem faltado.

O próximo capítulo poderia ser a ocasião para se inverter esta tendência e construir essa visão inspiradora, ajudados pelo magistério recente (Bento XVI e o Papa Francisco na Alegria do Evangelho); por S. Daniel Comboni que já nas Regras de 1871 dizia que “as regras de um instituto para formar apóstolos, para que sejam duradouras devem apoiar-se em princípios gerais” (Regra de Vida, pagina 185); apoiados na Regra de Vida que é muito mais comedida ao definir a finalidade do Capítulo Geral: “guardar fielmente o património do instituto, o carisma do Fundador, o fim, o espírito, a índole e as sãs tradições do Instituto” (RV 146). Nesse sentido, bastaria que o próximo capítulo nos oferecesse um só documento que actualizasse o carisma missionário comboniano e nos pusesse em caminho para a procura das respostas de que precisamos.

4.- Ausência de respostas

Ao lermos os documentos dos últimos capítulos gerais fica-nos um sabor amargo. Como é que, com tantas indicações e propostas detalhadas, tendo em vista a renovação dos vários sectores e os âmbitos da nossa vida, nos encontramos hoje com a sensação de não termos tido durante os últimos anos resposta efectiva para as situações que vivemos e os desafios que temos que enfrentar?

Dir-se-á que estou a ser muito negativo; mas a verdade é que em muitas províncias não encontramos resposta para os problemas da promoção e formação (diremos, para nos consolar, que na Europa não há vocações, o que é obviamente uma meia verdade, do momento em que não há vocações para os institutos missionários, mas há vocações para outros institutos, igrejas locais, comunidades e movimentos. E esquecemos que também na América Latina, por exemplo, estamos sem resposta neste campo, como demonstra a crise da formação no México e a estagnação actual noutras províncias); como não encontramos resposta para sermos uma presença evangelizadora significativa em muitos lados, da África à Ásia, remetendo-nos à condição de grupo a envelhecer, em retirada; como não encontramos resposta ao problema da revisão dos empenhos, deixando aumentar a tensão entre os empenhos e o pessoal que temos disponível; como não conseguimos estancar a hemorragia dos abandonos e o aumento dos casos e situações de crise... A lista poderia continuar, mas fico-me por aqui para, então, não parecer demasiado negativo, mas simplesmente realista e sublinhar este abismo crescente entre as muitas sugestões e propostas dos últimos capítulos e a real falta de respostas eficazes com que nos deparamos.

5.- Propor sem legislar

Uma leitura atenta dos documentos dos mais recentes capítulos gerais mostra esta tendência para fornecer indicações e propostas a todos os níveis, mas, curiosamente os últimos dois capítulos gerais mostraram-se incapazes de produzir indicações e propostas com poder de transformação: foram incapazes de legislar efectivamente. Refiro-me ao facto que os capítulos falharam nas várias tentativas de renovarem a Regra de Vida, na parte referente à coordenação do Instituto, por exemplo. Os capítulos gerais propuseram assim indicações, sem suporte da Regra de Vida e vieram a criar situações caricatas mantendo, na questão da coordenação, uma duplicidade (central e continental) sem suporte na Regra de Vida e portanto sem fundamento canónico; ou indicaram caminhos ao instituto sem o respaldo explícito da Regra de Vida (como no caso do Fundo Total Comum).

Naturalmente, a Regra de Vida não se opõe a estas indicações e elas podem ser vistas segundo o espírito da Regra. Mas o facto é que os capítulos não conseguiram rever a Regra de Vida, o primeiro passo por onde se deveria começar para introduzir as novas orientações. A Regra de Vida (nº 153) diz que “o capítulo geral tem a responsabilidade de promover a fidelidade do instituto à sua missão na Igreja” e que “por isso, tem a competência de rever todos os aspectos da sua vida e actividade”.

Diante desta situação que caracterizou os últimos capítulos, que ofereceram indicações sem legislar com eficácia renovando a Regra de Vida, temos que nos perguntar sobre o que tem impedido os capitulares de encontrar “a maioria de dois terços para poder introduzir alterações nas constituições” (RV 153). A resposta pode estar na falta de preparação das questões durante o período pré-capitular: por sua natureza, as mudanças nas constituições do instituto pedem o envolvimento de todos, na reflexão e na consulta, e a falta desse envolvimento explica, e tem como resultado, a incapacidade de gerar as maiorias capitulares necessárias para qualquer revisão da Regra de Vida.

A Regra de Vida diz que o capítulo é a suprema autoridade do instituto, “exercida de maneira extraordinária e colegial” e que “exprime a participação de todos os missionários” (RV 146) na vida do instituto. Ora, a primeira forma dessa participação é a reflexão sobre as questões que vão a capítulo; quando esta reflexão e participação activa falha, o capítulo arrisca-se a falhar também. A Regra de Vida (147.3) acautela este ponto: “o capítulo é precedido por uma suficiente consultação e estudo, organizados por uma ou mais comissões...”.

6.- Representar, sem usurpar

A segunda forma com que os membros do instituto participam no capítulo é mediada; isto é, através dos capitulares delegados, eleitos “por todos os membros com direito de voto” (RV 148). E o número 151 reitera que “os capitulares são representantes de todo o instituto e de cada missionário”.

Na visão da Regra de Vida, os capitulares, mormente os delegados eleitos, obtêm a sua autoridade e exercem a sua responsabilidade capitular, não por virtude de uma representação infusa (recebida directamente dos céus e exercida a seu bel prazer), mas de uma representação que se recebe dos confrades através do voto e que exige que os delegados representem em todo o momento e levem ao capítulo o pensar dos que os elegeram; uma representação que tem legitimidade tanto quanto exprime o mandato recebido.

A Regra de Vida é clara nestes pontos: “Cada capitular tem a responsabilidade de procurar todas as informações necessárias para um frutuoso desempenho do seu mandato, interessa-se por todos os problemas do seu colégio eleitoral, contacta com os seus eleitores e informa-se sobre a situação de todo o instituto” (RV 151.1).

Ora, o espírito que tem predominado nos últimos capítulos é ver-se o capítulo, os seus membros como “autoridade suprema” (o capítulo é supremo!, repete-se) como corpo em si, separado do resto dos membros do Instituto. Como vimos, segundo a Regra de Vida, o capítulo é autoridade suprema tanto quanto representa os membros do instituto (RV 146). E nesta perspectiva não faz sentido que os capitulares deitem no caixote do lixo os documentos preparatórios, que recolhem a participação dos membros do instituto, e se usurpem a tarefa de re-escrever as questões sem essa participação e contribuição, chegando ao ponto de votar em capítulo questões e temas que entram no mesmo vindas do céu à última hora e por pára-quedas (por razões de moda, de sensibilidades de momento, de personalidades com influência), sem passarem pelo discernimento de todos os confrades. O conceito de representação, contido na Regra de Vida, pediria que os delegados capitulares consultassem os membros que os elegeram antes de votarem questões não debatidas no processo de preparação capitular.

7.- O centro vital

O próximo Capítulo Geral realiza-se no rescaldo da celebração dos 150 anos do “Plano de S. Daniel Comboni para a Regeneração da África”. A preparação do XVIII Capítulo Geral acontece em ambiente de reflexão sobre o Plano. Gostaria, pois e para terminar, de indicar um outro ponto que pode ter a ver com a falta de eficácia dos capítulos: o modo como a recepção dos capítulos é conduzida, tanto a nível geral, pela Direcção Geral, como a nível provincial, pelas Direcções Provinciais.

Nos últimos capítulos ficou-se com a impressão de que algo falhou neste campo, no modo como a recepção aos documentos do capítulo foi conduzida. Os documentos são deixados nas mãos dos membros do instituto, ou deixados à iniciativa dos secretariados ou comissões de formação permanente, o que abre caminho a leituras pessoais ou parciais, a tomadas “da parte pelo todo”, a uma recepção a que falta integração, constância e supervisão, a uma implementação avulso.

Em relação ao Plano, São Daniel falava de “um centro vital” que guiasse a execução e acompanhasse a realização, que propusesse, corrigisse, encorajasse. Ora, em relação aos documentos saídos dos capítulos, é necessário fazer funcionar “um centro vital” que mantenha viva a chama do capítulo e acompanhe de perto a sua recepção, assumindo-se sobretudo como centro de animação carismática: a nível do Instituto, o Superior Geral e o seu Conselho são esse centro vital; a nível provincial, o Superior Provincial e o seu Conselho são o centro vital que deve assegurar a vitalidade às orientações do capítulo, coordenando de modo sistemático e integrado a realização das indicações capitulares. Se falta vitalidade ao centro, ou se o centro deixa de exercer a sua acção dinamizadora, então os documentos acabam letra morta, incapaz de dar a vida e regenerar o instituto.

Com São Daniel Comboni, desejamos que, tanto o processo de preparação como depois a recepção aos documentos do XVIII Capitulo Geral possam dispor de um “centro vital” capaz de trazer para a vida das pessoas e das comunidades o acontecimento carismático que é o capítulo e assim regenerar o instituto para a sua missão, na Igreja e no mundo de hoje.
P. Manuel Augusto Lopes Ferreira, mccj
15 de Agosto de 2014,
Festa da Assunção de Maria